Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

PIRIPAQUE

Escreveu o amigo e mestre engenheiro Sócrates Times de Carvalho Neto. Talvez inspirado por artigo sobre outro amigo, Mané Tatu, que contou dos horrores que sofreu num exame que fez, Cintilografia. O texto me mandou até com título, Piripaque, e assim fica para todos os fins de Direito.

Afinal, que quer dizer isso exatamente? A palavra, apesar de seu uso comum, (ainda) não foi dicionarizada. Está na fila junto com outras, ainda em análise, como cordonel (lona textil), disania (dificuldade em sair da cama), microssono (sono breve), pejotização (contratação de trabalhador como pessoa jurídica), reclínio (ação de reclinar), retrofiltagem (modernização de edifícios antigos), terrir (gênero de filme), tokenização (substituição de dados sensíveis por códigos aleatórios). Até lembrei o tal Piripaque a Ricardo Cavaliere, confrade que é Coordenador da Comunicação de Lexicografia em nossa Academia Brasileira de Letras.

Ao que se sabe, sua etimologia sugere que derivou de Billie and Park, termo hospitalar que evoluiu para Blipark e depois, no Brasil, a dito Piripaque. Inspirada na expressão Histeric (ou Hy), aplicada aos que estiverem à beira de um ataque de nervos. Como se deu com o dito Sócrates.

Lembrei conto de Afrânio Peixoto, Ato de fé, em que disse dos exames médicos serem “tortura que o humanismo medieval adotou, legado às idades modernas como remanescente de uma inquisição”. Talvez seja mesmo. E sigamos com Sócrates:

“Como de hábito, acordei na madrugada para fazer xixi. Tomei água, para garantir que me levantaria novamente. Imagino seja uma maneira original de confirmar que ainda estou vivo. Mas acordei exausto.

Essa introdução parece coisa de bêbado, mas você irá entender. Acho. Não me sentia bem. Sem conseguir dormir na primeira e, menos ainda, na segunda mijada. Quando acordei, agora para tomar café e outras coisas, teve início uma aventura que nem Ulisses acorrentado poderia dizer que foi superior em sofrimentos, atrocidades e novas descobertas.

Suor frio, cansaço extremo com o menor esforço e o coração tentando sair pela boca. Mas sem encontrar o caminho, ainda bem. Minha mulher sugeriu verificar a pressão. Mediu três vezes e estava, na média, 13/9; só que o batimento cardíaco era de 120. Daí para frente. Nossa filha resolveu telefonar para o irmão, que é médico e estava já se preparando para ir a Gravatá com nossos netos.

Ele chegou, avaliou pressão e batimento cardíaco. Fez manobras que imaginei serem tentativa de me matar e, como não conseguiu, afirmou Vamos para uma emergência cardiológica que o batimento vai a 150 e oscila. Achei que fazia sentido e não haveria surpresa porque não tenho opinião firme, imagine meu pobre coração.

Nosso neto mais velho estava tentando sondar se eu iria morrer, o mais novo se iríamos para Gravatá. O caçula estava mais certo, não era o melhor dia para morrer. No hospital, esse filho me deixou em frente à emergência e foi estacionar o carro. Antes, me orientou o que dizer ao entrar na emergência.

Na primeira abordagem, um gentil atendente falou qualquer coisa como Seja bem-vindo, é uma satisfação tê-lo aqui…. Acho que foi isso, não sei, apenas repeti o que meu filho orientou. A partir de certa idade, pai deve obedecer a filho sem discutir. O atendente respondeu com fisionomia de quem encarou fantasma às 11h da manhã, Fique aqui!, correu e me colocou numa cadeira de rodas. Imaginei: ou é uma senha infalível ou estou andando por obra e graça do Senhor, eufemismo para tu morreu e não sabe.

Num clique, a recepcionista me deu senha. Imaginei fosse do necrotério, mas era da triagem. A triadora chamou meu anjo da guarda e falou box 29!. Ele saiu correndo e, no box 29, já havia alguém. Mais um monte de familiares. Ele não falou nada, nem eu, mas nossos olhares falaram, puta que pariu futebol clube!

Meu anjo da guarda, brasileiro, não questionou o engano, não reclamou e se virou nos 30. Foi em frente até encontrar um box vazio, o 31 Lá, me deitou e foda-se quem iria para o tal box 31. Vá morrer em outro box! que cheguei primeiro, seu filho da puta.

Uma mocinha, linda e gentil, acho que cabelos brancos e fragilidade são armas, teve a atenção de me informar que iria fazer um eletrocardiograma. Foi rápida. Puxou uma fita de papel, colocou na vertical ou horizontal não lembro, e perguntou O senhor já enfartou? Respondi não, mas é melhor repetir depois dessa pergunta. Ela não achou graça.

Entrou um sujeito jovem, firme nas ações, tentando me convencer que essa porra toda não era nada especial. Não foi assim que falou, mas pimenta no cú dos outros… Repetiu a manobra mecânica executada por meu filho. A cama de nossa casa é o melhor lugar para morrer, garanto. Então!, chegou o tal filho. Colocou uma calça jeans sobre a bermuda e manteve os chinelos. Era isso ou entraria descalço na emergência. Foram contemporâneos, meu filho e o cardiologista. O que isso significa? Rigorosamente, coisa nenhuma.

O tal cardiologista executou outra manobra e… nada. Ficou sem graça e afirmou Nunca perdi a retomada da frequência cardíaca com as manobras, acho que temos que usar medicamento. Afirmei que derrota não assusta torcedor do Náutico.

Eu estava sendo monitorado, em tempo real, com aquela mini tv que transmite ao vivo a morte. Sabia disso pelo movimento do globo ocular dos coveiros no box 31 e, também, porque me interessei pelo espetáculo. Recomendo. Se não estiver em coma, claro. O cardiologista, provavelmente por conta da presença do colega de residência, perguntou Vamos fazer nova tentativa?

Eu senti cheiro de indecisão (eufemismo para cheiro de merda) e não deixei ninguém decidir, não delego merda, merda faço eu, a glória é minha e o desastre é uma glória por livrar todos da decisão. Foda-se! Com calma, defini: não tente nova manobra, eu quero que seja administrado algum medicamento.

Chegou um enfermeiro que teve aula com meu filho, quando era plantonista em outro hospital. Nova festa. Eu só olhando e pensando na farra dos funerais irlandeses, comida, bebida, encontro com velhos amigos, roupa de casamento e enterro, mas eu ainda estava vivo. O cardiologista falou o nome da droga, Adenosina, que seria providenciada. E, em seguida, tentou me explicar o que ocorreria. Se bem percebi, havia um curto-circuito no controle dos batimentos cardíacos, provocando um descompasso que atende por arritmia.

Não entendi o por quê da tensão, até então. Mas era razoável. O cardiologista falou A droga vai parar seu coração por 2 a 4 segundos, é como morrer nesse momentoTodos relatam que há um mal-estar grande, mas passageiro. Topa? Sim, vai ser interessante para ir treinando. Era só o que faltava, um torcedor do Náutico ter medo de droga.

A tal porta se abriu, entrou uma enfermeira com a droga e um coveiro arrastando um desfibrilador. Olhei praquela merda e para meu filho, um escroto; que, com fisionomia de quem pede outro chope, afirmou Fica tranquilo, isso é protocolo. Injetaram a tal droga da morte prêt-à-porter e o cardiologista falou Começou!. Contei, mentalmente: 1001, 1002, 1003… nada… então 1004. A frustração foi tal que perguntei: acabou?

Havia acabado a administração da droga da morte de brincadeirinha, recurso que deveria ter um nome de impacto mas não tem. Acho que os médicos só se interessam pela morte pra valer. Não senti nenhuma diferença entre estar vivo ou morto, continuo fazendo as mesmas merdas.

A outra opção, menos provável, é que estou morto e não sei, vivendo num mundo paralelo. Na segunda opção, espero que não tenha influência no mundo dos vivos e que nada do que escrevi seja lido. Beijos do Além”.

Lembrei outro texto, agora de Millôr (A Bíblia do caos), “Os médicos não descobriram nada, mas recomendaram outros exames. Se eu aceitar fazer todos, e ficar bem quietinho, eles prometem achar alguma coisa”. Pode ser. No caso relatado, em resumo, o amigo Sócrates sobreviveu. Ainda bem. Até agora, pelo menos. Graças. Adeus.

José Paulo Cavalcanti Filho

jp@jpc.com.br

Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

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