Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ DEPOIS DO FIM (5 de 5)

Recife. Encerramos, aqui, esta série.

Pessoa morto, Ophélia Queiroz, seu implausível amor, está com ele no quarto. Só os dois. Então coloca a mão direita dele entre as suas; diz, sussurrando, quase tudo que sempre lhe quis dizer; e apenas o olha, com calma, sabendo que nunca mais fará isso novamente. “Um galo canta”. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e nem olham umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.”

O quarto começa a ficar claro com os primeiros prenúncios do dia. As freiras voltam e dizem que a família pode chegar a qualquer instante. Pensando em momentos assim Pablo Neruda escreveu, na sua Canção desesperada, que “É hora de partir, oh abandonado”. Ela se levanta e olha pela última vez para aquele rosto que, nos sonhos, pensou ser seu. Uma das freiras põe a mão no bolso do pijama do morto, retira de lá o livrinho de Bocage (prefaciado por da Cunha, e por este ofertado a Pessoa) e lhe dá. Para que o aceite, diz imaginar que Pessoa gostaria ficasse com ela (também esse livro hoje dorme, no Recife).

Ophelia põe o presente na bolsa e sai por onde veio. Em silêncio. Depois, para que ninguém soubesse dessa despedida, declara ter tido notícia de sua morte pelo sobrinho Carlos Queiroz. Segundo ela, então, levei a mão à cabeça, dei um grito, chorei muito, por muito tempo. Só não disse é que chorou antes, e a seu lado. Em poema sem título, de 4/1/1935, Álvaro de Campos escrevera.

Eu, eu mesmo…

Eu, cheio de todos os cansaços

Quantos o mundo pode dar.

(…)

Mas eu, eu…

Eu sou eu,

Eu fico eu,

Eu…

PRIMEIRO DE DEZEMBRO, DOMINGO. O caixão é levado à Capela do Cemitério dos Prazeres, para que o velem. Amigos tentaram providenciar os anúncios na noite anterior, mas não circulariam jornais no domingo, nem na segunda pela manhã (2/12), em razão do feriado de 1º de dezembro ‒ data da Restauração Portuguesa (em 1640, quando Portugal deixou de ser dominado pela Espanha, o que se deu em razão da morte de D. Sebastião, em 1578 passando a ser rei D. João IV). Só se consegue avisar os mais próximos. “É domingo e não tenho o que fazer” ‒ escrevera, no Desassossego, em 1/2/1930. Um sábado. Nesse domingo de agora, nada faria mesmo. Seu papel era o de ficar deitado, mudo, imóvel, porque “Velo, na noite em mim, meu próprio corpo morto”. Em Cul-de-lampe, por Álvaro de Campos, diz

Que mais querem? Acabei.

Basta, que já estou cego para o que vejo!

Arre, acabei!

Basta!

DOIS DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, Pelas 11 horas, em silêncio, parte o cortejo na direção de um túmulo raso do Cemitério dos Prazeres, onde é posto numa prateleira do jazigo da querida avó Dionísia, pertencente à família. “Fui eu e a minha sepultura.”

Depois diria Negreiros que em um dia, em 1935, “o poeta foi pessoalmen-te enterrar o corpo que o acompanhou toda a vida. Gilles Germain até diz: “Nem Álvaro de Campos nem os outros (heterônimos) assistiram às exéquias. A explicação que se dá habitualmente dessa extravagância é que eles nunca existiram, o que é absurdo”. Enfim, “tudo era (mesmo) absurdo como um luto”.

Montalvor pronuncia a oração fúnebre. Pessoa escrevera 20 anos antes, a pedido do mesmo Montalvor, texto que bem retrataria a cena de agora: “Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse.”

“Reza por mim, Maria, e eu sentirei uma calma de amor sobre o meu ser. Como o luar sobre um lago estagnado.” Nesse diálogo, Pessoa/Fausto pergunta: “Choras? Fiz-te chorar?” Após o que responde Maria: “Sim… Não… Eu choro apenas de te ver triste.” Fausto: “Tu amas-me, Maria?” E ela: “Sinto o teu pavor, quando penso em ti… Ah, como te amo.” Após o que Fausto encerra o diálogo: “Amor! Como me amarga de vazia em meu ser esta palavra… Não, não chores.”

“Morrer é só não ser visto.” A cerimônia, assim a descreve Gaspar Simões, “é discreta e lágrimas poucas ou nenhuma”. “Sem memória de lágrimas”, confirma Luís Pedro Moutinho de Almeida. Os jornais dos dias seguintes noticiarão essa morte com destaque adequado a sua importância, para as letras portuguesas, em 28 anúncios: 12 em Lisboa, quatro no Porto, dois em Coimbra e um em Braga, Faro e Sintra, mais quatro nos Açores e três na Madeira. Com equívocos naturais: como o de que teria morrido na Casa de Saúde das Amoreiras (A Pátria); ou que era formado em letras pela Universidade da Inglaterra (O Século); ou que era autor insigne de Orfeu (assim grafado o título da revista, em O Comércio); ou que teria deixado entre mãos um romance (Diário do Minho).

“A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida há um ponto final.” Nada a lamentar que, para ele, “morrer é continuar”. Afinal, cumpre-se o Destino. “Seja a morte de mim em que revivo.” A deusa da poesia portuguesa, Sophia de Mello Breyner Andresen, lhe dedicou poema (Fernando Pessoa), uma colagem de seus versos — alguns completos, outros tomados como inspiração; e encerra adaptando Escrito num livro abandonado em viagem, “fui como ervas”; mais, literalmente, os dois primeiros versos de Abdicação. Nele, a poetisa chora (trecho):

Teu canto justo que desdenha as sombras

Teu corajoso ousar não ser ninguém

Tua navegação com bússola e sem astros

E és semelhante a um deus de quatro rostos

E és semelhante a um deus de muitos nomes

Foste como as ervas não colhidas.

Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

Pessoa morreu? Viva Pessoa!

José Paulo Cavalcanti Filho

jp@jpc.com.br

Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

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