Recife. Encerramos, aqui, esta série.
Pessoa morto, Ophélia Queiroz, seu implausível amor, está com ele no quarto. Só os dois. Então coloca a mão direita dele entre as suas; diz, sussurrando, quase tudo que sempre lhe quis dizer; e apenas o olha, com calma, sabendo que nunca mais fará isso novamente. “Um galo canta”. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e nem olham umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.”
O quarto começa a ficar claro com os primeiros prenúncios do dia. As freiras voltam e dizem que a família pode chegar a qualquer instante. Pensando em momentos assim Pablo Neruda escreveu, na sua Canção desesperada, que “É hora de partir, oh abandonado”. Ela se levanta e olha pela última vez para aquele rosto que, nos sonhos, pensou ser seu. Uma das freiras põe a mão no bolso do pijama do morto, retira de lá o livrinho de Bocage (prefaciado por da Cunha, e por este ofertado a Pessoa) e lhe dá. Para que o aceite, diz imaginar que Pessoa gostaria ficasse com ela (também esse livro hoje dorme, no Recife).
Ophelia põe o presente na bolsa e sai por onde veio. Em silêncio. Depois, para que ninguém soubesse dessa despedida, declara ter tido notícia de sua morte pelo sobrinho Carlos Queiroz. Segundo ela, então, levei a mão à cabeça, dei um grito, chorei muito, por muito tempo. Só não disse é que chorou antes, e a seu lado. Em poema sem título, de 4/1/1935, Álvaro de Campos escrevera.
Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar.
(…)
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…
PRIMEIRO DE DEZEMBRO, DOMINGO. O caixão é levado à Capela do Cemitério dos Prazeres, para que o velem. Amigos tentaram providenciar os anúncios na noite anterior, mas não circulariam jornais no domingo, nem na segunda pela manhã (2/12), em razão do feriado de 1º de dezembro ‒ data da Restauração Portuguesa (em 1640, quando Portugal deixou de ser dominado pela Espanha, o que se deu em razão da morte de D. Sebastião, em 1578 passando a ser rei D. João IV). Só se consegue avisar os mais próximos. “É domingo e não tenho o que fazer” ‒ escrevera, no Desassossego, em 1/2/1930. Um sábado. Nesse domingo de agora, nada faria mesmo. Seu papel era o de ficar deitado, mudo, imóvel, porque “Velo, na noite em mim, meu próprio corpo morto”. Em Cul-de-lampe, por Álvaro de Campos, diz
Que mais querem? Acabei.
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
DOIS DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, Pelas 11 horas, em silêncio, parte o cortejo na direção de um túmulo raso do Cemitério dos Prazeres, onde é posto numa prateleira do jazigo da querida avó Dionísia, pertencente à família. “Fui eu e a minha sepultura.”
Depois diria Negreiros que em um dia, em 1935, “o poeta foi pessoalmen-te enterrar o corpo que o acompanhou toda a vida. Gilles Germain até diz: “Nem Álvaro de Campos nem os outros (heterônimos) assistiram às exéquias. A explicação que se dá habitualmente dessa extravagância é que eles nunca existiram, o que é absurdo”. Enfim, “tudo era (mesmo) absurdo como um luto”.
Montalvor pronuncia a oração fúnebre. Pessoa escrevera 20 anos antes, a pedido do mesmo Montalvor, texto que bem retrataria a cena de agora: “Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse.”
“Reza por mim, Maria, e eu sentirei uma calma de amor sobre o meu ser. Como o luar sobre um lago estagnado.” Nesse diálogo, Pessoa/Fausto pergunta: “Choras? Fiz-te chorar?” Após o que responde Maria: “Sim… Não… Eu choro apenas de te ver triste.” Fausto: “Tu amas-me, Maria?” E ela: “Sinto o teu pavor, quando penso em ti… Ah, como te amo.” Após o que Fausto encerra o diálogo: “Amor! Como me amarga de vazia em meu ser esta palavra… Não, não chores.”
“Morrer é só não ser visto.” A cerimônia, assim a descreve Gaspar Simões, “é discreta e lágrimas poucas ou nenhuma”. “Sem memória de lágrimas”, confirma Luís Pedro Moutinho de Almeida. Os jornais dos dias seguintes noticiarão essa morte com destaque adequado a sua importância, para as letras portuguesas, em 28 anúncios: 12 em Lisboa, quatro no Porto, dois em Coimbra e um em Braga, Faro e Sintra, mais quatro nos Açores e três na Madeira. Com equívocos naturais: como o de que teria morrido na Casa de Saúde das Amoreiras (A Pátria); ou que era formado em letras pela Universidade da Inglaterra (O Século); ou que era autor insigne de Orfeu (assim grafado o título da revista, em O Comércio); ou que teria deixado entre mãos um romance (Diário do Minho).
“A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida há um ponto final.” Nada a lamentar que, para ele, “morrer é continuar”. Afinal, cumpre-se o Destino. “Seja a morte de mim em que revivo.” A deusa da poesia portuguesa, Sophia de Mello Breyner Andresen, lhe dedicou poema (Fernando Pessoa), uma colagem de seus versos — alguns completos, outros tomados como inspiração; e encerra adaptando Escrito num livro abandonado em viagem, “fui como ervas”; mais, literalmente, os dois primeiros versos de Abdicação. Nele, a poetisa chora (trecho):
Teu canto justo que desdenha as sombras
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Foste como as ervas não colhidas.
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Pessoa morreu? Viva Pessoa!
José Paulo Cavalcanti Filho
jp@jpc.com.br