Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

OS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA ‒ O HOSPITAL (3 de 5)

Lisboa. Está cada vez pior. Manassés, seu vizinho barbeiro, lhe faz a última barba. Alguns amigos estão com ele.

Pessoa, mal, se prepara para ir ao hospital. Então vai até a estante e retira de lá o menor livro (9 por 13 centímetros) que encontra, Sonetos escolhidos, de Bocage ‒ que, em 1921, lhe havia sido dado “com o respeito que lhe merece o seu talento” pelo prefaciador da obra, o amigo íntimo (Alberto) da Cunha (Dias). Põe o livrinho no bolso direito. Está pronto. Uma automaca (maca montada em automóvel, predecessora das ambulâncias de hoje) o leva embora dessa casa à qual jamais voltaria. “Perdi a esperança como uma carteira vazia.” Em A um revolucionário morto, disse:

Talvez a vitória seja a morte, e a glória

Seja ser só memória disso

A vida é só tê-la, vivê-la e perdê-la.

HOSPITAL SÃO LUÍS DOS FRANCESES. “Trazei pajens; trazei virgens; trazei, servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos (ramos de murta). Vai o Rei a jantar com a Morte no seu palácio à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.”

Mas sua vida nem sempre imitou a arte; que o “palácio antigo”, com que sonhou, não fica à beira de nenhum lago. Nem está próximo de qualquer montanha. Trata-se de um dos melhores e mais caros hospitais particulares da Lisboa daquele tempo, o São Luís dos Franceses. Fica no Bairro Alto de São Roque, na Rua (Simão da) Luz Soriano 182 ‒ lugar calmo e sombreado, com bancos de ferro ao redor, perto da casa em que mora e a menos de um quilômetro do apartamento em que nasceu.

É conduzido ao quarto 30 (mais tarde, renumerado para 308) ‒ o mesmo em que morrerá, depois, o amigo Almada Negreiros (em 1970). Tão distante do que pressente, em O marinheiro, “um quarto que é sem dúvida num castelo antigo”. Diferente do verão, a luz é pouca naquele quarto acanhado ‒ 3 metros por 4, cama de ferro como as de todos os hospitais, um armário alto, outro pequeno com telefone por cima, sofá para dois lugares, cadeira e mesa de cabeceira modernosa.

Entre cama e janela fica o rendado miúdo de um mosquiteiro, embaçando a paisagem, cenário perfeito para verso que antes escrevera ‒ “Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são”; ou, quase as mesmas palavras do Primeiro Fausto, “há entre mim e o real um véu”.

As paredes, até 2 metros, são limpas, pintadas com uma tinta escura; acima disto, e no teto, branco imaculado. Sem um único quadro. Hoje esse quarto tem, pela frente, o elevador que leva ao primeiro andar. A parede é clara e áspera, salpicada por cimento até 2 metros de altura; e, a partir daí, lisa como antes.

O teto é de gesso. Um sofá para duas pessoas, bem antigo, fica entre a cama e uma janela que tem grade por fora. Armário, mesa de cabeceira austera e três cadeiras comuns de madeira completam a decoração. Sem grandes mudanças, hoje, em relação à decoração daquele tempo. Em Ritos iniciáticos, diz

Pergunta ‒ De onde vens?

Resposta ‒ Não sei.

P ‒ Aonde vais?

R ‒ Não me disseram (sei).

P ‒ O que sabes?

R ‒ O que esperei (Nada).

Mestre do Átrio ‒ Basta que me digas sim.

O Neófilo ‒ Sim

Mestre do Átrio ‒ A paz seja contigo.

O cenário do festim está pronto. Em vez de pagens, virgens ou servos, é acompanhado apenas por austeras enfermeiras. Sem música ou dança, há lá só aquele silêncio que prenuncia eternidade. Luís Pedro Moitinho de Almeida confirma, citando depoimento de amigos: Não se lhe ouvia um queixume. Só dizia o que era preciso. “Quem sabe se morrerei amanhã?”

Pressente o desastre inevitável e pede um lápis; é que, deitado na cama, tem mesmo que recorrer a ele ‒ dado não lhe ser possível usar o bico da pena com que quase sempre se escrevia, naquela época, por só funcionar com essa pena para baixo. E por não haver onde repousar o tinteiro. Esse lápis a família guarda, ainda hoje. Então põe no peito sua inseparável pasta preta, sobre ela um papel e, em inglês, deixa sua última frase escrita:

I know not what tomorrow will bring (Eu não sei o que o amanhã trará).

Mesmo no inglês corrente do seu tempo, a frase deveria ter sido I don’t know what tomorrow will bring. O uso intencional desse estilo arcaico, com know not, acentua o sentido literário que quis lhe dar.

Já para Pizarro, Ferrari e Cardiello, terá sido “eco evidente de um epigrama de Palladas de Alexandria (Today let me live well; none knows what may be to-morrow), publicado no primeiro volume de Greek anthology (1916) — um livro que estava nas estantes de Pessoa. Para Jorge Monteiro, em outra versão, escreve a frase evocando “conscientemente as Escrituras (Provérbios, 27:1) que dizem: “Não te felicites pelo dia de amanhã/ Pois não sabes o que hoje vai gerar”.

Segundo sua sobrinha Manuela Nogueira, não foi a primeira vez que disse essas palavras. A confirmar esse depoimento, bom notar que quase reproduz versos incompletos, escritos em 28 de outubro de 1920, depois encontrados na Arca:

I, that know not if I shall live tomorrow,
How but my hope of that live I today.

Não literalmente,

Eu, que não sei se viverei amanhã

Nada tenho senão a esperança de viver hoje.

No Desassossego, pressente “a tortura do destino!” e se pergunta: “Quem sabe se morrerei amanhã?” Essas palavras só agora estavam certas. E todos o sabiam, inclusive ele próprio.

José Paulo Cavalcanti Filho

jp@jpc.com.br

Consultor da UNESCO e Banco Mundial. Presidente do CADE, da EBN ( Tv Brasil ) e do Conselho de Comunicação Social (do Congresso Nacional). Membro da Comissão Nacional da Verdade. Ministro da Justiça da Academia Portuguesa de Letras. Cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras.

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