Lisboa. Já sem mais esperanças, escreve a última frase e se prepara para partir.
TRINTA DE NOVEMBRO, SÁBADO. “Aquele depois de amanhã”, dos versos de antes, afinal chegara. O “tomorrow” da última frase, que não sabia o que lhe traria, seria o próprio amanhã. O do dia seguinte. O amanhã sem metafísica. “Ah, que manhã é esta?” As horas passam vadias. “A última tarde já não temo.” Essa tarde vai findando “e o poente em cores da dor de um deus longínquo ouve-se soluçar para além das esferas”.
Escurece. “A noite desce, o calor soçobra um pouco, estou lúcido como se nunca tivesse pensado.” No Desassossego, confessa: “Só pedi à vida que me não tirasse o sol.” Nunca mais o veria. E treme ao pressentir o que está para acontecer. “Bem no fundo de tudo, calada, a noite era o túmulo de Deus.” Seja. “Senhor, a noite veio”, “com seu negro mistério roto de astros”. É uma noite de chuva. Seria sua derradeira.
“Fito o meu fim que me olha, tristonho, do convés do Barco que são todos os barcos” e “cerro os olhos lentos e cheios de sono”. Pelas 7 da noite, imaginando que Pessoa está bem e precisando cuidar da mulher presa em casa, na cama, o cunhado volta ao Estoril. No quarto ficam o dr. Jaime Pinheiro de Andrade Neves e um médico do hospital, o dr. Alberto António de Moraes Carvalho.
Logo após a partida do cunhado, chegam os amigos Francisco Gouveia, Vítor da Silva Carvalho e Augusto Ferreira Gomes. Certamente, segundo o hospital, havia lá também um capelão e uma enfermeira ‒ talvez religiosa, dado ser esse hospital então administrado pela Ordem de São Vicente de Paula, sem mais registros de seus nomes. Aos amigos, segundo informam António Quadros e Gaspar Simões, ainda consegue perguntar com voz clara e alta:
“Amanhã a estas horas, onde estarei?”
Não há memória do que lhe tenham respondido. “Partir! Meus Deus, partir! Tenho medo de partir!…”, escrevera tão antes. Pelas 8h da noite, começa a perder a visão. Em um intervalo de lucidez, e pensando ainda em ler o livrinho que tem com ele, murmura suas últimas palavras:
“Dai-me os óculos” (esse óculos hoje dorme, no Recife).
Não lhe deram. Nem haveria serventia para eles. “A morte não virá nem tarde ou cedo.” Andam longe os tempos em que diz “agora que estou quase na morte, vejo tudo já claro”. Ou, como nos Poemas ingleses XII, “a vida nos viveu, não nós a vida”. Então, foi “como se uma janela se abrisse”; e meia hora depois, simplesmente, “meu coração parou”.
Apesar dos muitos relatos que situam a morte por volta das 20h30, no Assento de Óbito está só 20 horas. Afinal, como premonitoriamente escrevera, “o rio da minha vida findou”. O Ícaro de um sonho, como o definiu Montalvor, afinal partia na direção das estrelas.
“Viva eu porque estou morto! Viva!” Reproduzindo versos do passado, agora também ele era “as mãos cruzadas sobre o peito e o gesto parado de não querer nada”. Por conta de um temporal, os telefones do Estoril deixam por horas de funcionar. A irmã doente e o cunhado que a acompanha só depois sabem dessa morte pelo telefone azul na casa, número 356.
Esse cunhado lamenta que tenha estado sem a família naquele momento, pede que marquem o enterro para o fim da manhã de segunda-feira e que providenciem os anúncios fúnebres. Depois, declarará ter tido “um fim desgraçado”.
“Quando se vai morrer, é preciso lembrar-se de que o dia morre, e que o poente é belo e é bela a noite que fica.” Porque “a Morte é o triunfo da Vida”. “Hoje, agora, claramente, ele morreu. Mais nada.” Morreu como viveu, perdido “num grande horror de túmulo e de fim”.
Os amigos se vão e o corpo fica no quarto, sem mais ninguém. As freirinhas do hospital, sabedoras da relação que tivera com Ophelia Queiroz, ligam e perguntam se ela não quer se despedir do amigo sem que outros a vejam. Essa informação não deve causar tanta estranheza, pois muita gente sabia disso. Na família de Ophelia, com certeza. E, também, no grupo de amigos de Pessoa. Tanto que Montalvor chegou a flagrar o discreto namoro dos dois.
Almada Negreiros, na própria noite do enterro de Pessoa, fez o mais famoso desenho de seu rosto; e deu a gravura de presente, nessa mesma noite, a Carlos Queiroz ‒ o depoimento é da sobrinha-neta de Ophelia, Maria das Graças Queiroz. Sendo, Carlos, sobrinho de Ophelia. Certo que, não soubesse da relação, e jamais lhe daria essa gravura (hoje dormindo, no Recife). Que acabou sendo a capa da biografia que escrevi sobre ele (Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Ed. Record).
Não sendo assim desarrazoada a hipótese de que uma das freiras pudesse mesmo saber daquele romance interrompido. Pouco depois Ophelia chega e a levam para o quarto por uma entrada lateral, de serviço. A porta é trancada e os dois ficam sozinhos. “Velamos as horas que passam.”
Então põe a mão sobre a testa do amado e treme, talvez lembrando versos que lera em The mad fiddler: “Oh, tua mão no meu cabelo, mão de mãe repousa.” Talvez seja só coincidência, mas Almada Negreiros escreveria, depois, quase essas palavras: Mãe! Passa a tua mão sobre a minha cabeça!/ E deixa-me morrer com ela sobre mim. Em L’ inconnue, do mesmo The mad Fidller, Pessoa quase antevira essa cena (trechos):
Deixa que a tua mão arrume
O meu cabelo para trás.
Dando-me alívio!
Deixa que meu repouso se agite.
Descanso verdadeiro, venha logo!
José Paulo Cavalcanti Filho
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