“Sou um homem marcado
Mas esta marca temerária
Entre as cinzas das estrelas
Há de um dia se apagar”
O poeta Joaquim Cardozo definiu nestes versos o fim de um grande homem. Talvez até para expressar seu próprio fim. Mas as marcas de um grande homem jamais se apagarão e as suas cicatrizes temerárias servirão de traços para demarcar a proeza do chão de sua terra.
Seus gestos irão reluzir quando não houver mais nenhuma luz no fim do túnel, e aí reacendem-se todas as palavras, todos os sorrisos, todos os abraços e até mesmo o seu silêncio naquelas horas em que não se tem nada para dizer.
Pois é…
Já andei em tropa, em dueto, em procissão; já fui curva, fui reta, risco e traço; fui estopa, fui linha, linho e laço; já fui turma, também fui multidão. Os mistérios do terço da razão, eu rezei nas novenas de Maria; faço o pelo-sinal todos os dias, pra poder caminhar meu coração.
Pois bem, fugia eu da “poesia concreta das esquinas”, do cimento e do caos. A quentura do asfalto, a fumaça das chaminés, a fúria da cidade grande e a violência da selva de pedras tangeram-me para longe da tontura dos arranha-céus. Refugiei-me em minha aldeia, berço de um santuário poético, onde a pressa é passageira e a calma é moradora. Deixo as mazelas lá fora e o chinelo no batente da varanda, para poder sentir o chão com o solado dos pés pisando no terreiro de minha calmaria.
Debrucei-me sobre o cansaço do dia, quando, de repente, meu cumpade, amigo, poeta, camarada Ésio Rafael (Grapiúna), em nome de Marcos Passos e Joselito Nunes me fez uma bela surpresa: pediu-me para prefaciar um livro e me mandou um mote dizendo o seguinte: “A VIDA CHEIA DE GRAÇA DO CANTADOR DE VIOLA”. Que coisa marlinda! Quanta honra! Lisonjeado fiquei e aqui estou tateando as palavras, para rabiscar alguma coisa que faça jus ao pedido desses imensos poetas e profundos conhecedores não só da literatura do cordel, mas da literatura universal.
Eu nasci no Pajeú das Flores; isso é um fato. Estendo-me na sombra do silêncio e deixo as folhas abanarem o mormaço do dia. Ali, a calma é prosa, é poesia; as flores agasalham os espinhos que depois de aquecidos protegem suas pétalas, defendem as rosas de algum beija-flor desastrado, ou de algum marimbondo disfarçado de abelha que, porventura, queira fazer morada em meu jardim.
Ouço os passos dos insetos, aglomerando-se na copa de uma velha baraúna, enquanto assisto a uma peleja de Lourival Batista e Pinto do Monteiro, no quintal de uma casa, numa lua cheia no Sertão do Moxotó, quando este, em um momento de sua vida, residiu na cidade de Sertânia. Segundo alguns apologistas, o mestre gostava dessa cidade pela facilidade que havia para pegar transporte. Eram dois Titãs: Louro do Pajeú e Pinto do Monteiro.
A vida inteira ouvi e vivi em algum cenário cantado por esses menestréis, que cantaram e decantaram as madrugadas de nossas vidas. Os motes, as glosas, as pelejas cheias de nuances e de martelos e mourões perguntados, que varavam as noites de nossa meninice. Sinto orgulho disso e disso eu tiro proveito para fazer meus balaios e cantar minhas canções. Ê sertão que eu amo tanto! Sertão seco de chuva, mas encharcado de tanta poesia e de tanta sensibilidade.
Os poetas cantadores são o nosso maior patrimônio, nossa riqueza e nosso orgulho de sermos nordestinos. Pois é; é no vazio de uma porta entreaberta, na deixa da ausência de um amor, ou nos labirintos das palavras, que eles tiram a poesia de “onde não tem, pra colocar onde não cabe”. É essa a definição mais exata sobre o que é ser poeta. É essa felicidade que sinto em ter nascido e sido embalado no berço do repentismo e levado pelas ondas sonoras das cordas de uma viola. É a vida cheia de graça de um cantador de viola que embeleza a minha e a de uma legião de admiradores desse gênero chamado cantoria.
Segundo um grande poeta chamado François Silvestre, só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a marca de sangue dos seus mortos e a certeza de luta dos seus vivos. Isso é a mais pura verdade; pra ser cantador é preciso saber das crenças, dos costumes e ter o sotaque de quem traz na alma a aridez aguda de um povo sofrido que, antes de tudo, é muito forte…
É por isso que sou um caboclo sonhador e levo a minha vida cheia de rimas, cheia de sonhos, cheia de prosas, cheia de graça.