Em cada cidade vivem duas cidades, uma por dentro da outra. A primeira, e mais evidente, é a dos Cartões Postais ‒ arquitetura, igrejas, museus, parques, ruas, mares, rios. Carlos Pena Filho, nosso Poeta do Azul, até disse isso em belo poema (Olinda):
Olinda é só para os olhos
Não se apalpa é só desejo
Ninguém diz é lá que eu moro
Diz somente é lá que eu vejo
Só que, ao lado desta cidade feita para se ver, há também uma outra, que habita aquela primeira ‒ com gente, lugares especiais, um jeito próprio de ser, as conversas, restaurantes (não os frequentados por turistas), mercados públicos de bairro ‒ entre eles, nosso preferido é o de Campo de Ourique. A cidade é a mesma. Só que diferente. E mais calorosa é a segunda, por ser povoada por amigos.
Saramago (em Palavras para uma cidade) até diz isso de maneira diferente: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória do interior no qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro… O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar”.
Com frequência nos perguntam por que tanto gostamos de Lisboa. A Olissibona dos Romanos, até quando foi tomada pelos Mouros, passando a ser Aschbouna. Mas só até 1147 quando, após cerco de três meses, foram, afinal, vencidos. E o nome da cidade passou a ser o de hoje. Aquela mesma de que falava Camões, nos Lusíadas (Canto 57), “E tu nobre Lisboa, que no mundo/ Facilmente das outras és princesa”. E Fernando Pessoa define (em Lisbon Revisited I) como “uma eterna verdade, vazia e perfeita”. A que o compadre Marcos Vilaça, confrade querido nas Academias Pernambucana, Brasileira e Portuguesa de Letras, chama não de Lisboa, mas de Lisótima.
As respostas óbvias são o pouco tempo de avião para chegar lá, pouco mais de 6 horas. Ou o fato de pertencer a um belo país. Ou o clima, com quatro estações bem definidas, permitindo à noite usar paletós ou suéteres. Ou por ser uma realidade bem distinta da do Recife, com horários para dormir e acordar que são outros. Só que é mais. Tentarei explicar em alguns exemplos.
CULINÁRIA. É única. Dona Lectícia diz ser a da França, mais famosa. Com muito molho e misturas inesperadas. Só que, depois de poucos dias, já ninguém aguenta mais. Quer comida caseira. Como a de Portugal, em que tudo vem na proporção certa. Trata-se, para ela, da melhor do mundo. Depois da nossa do Nordeste brasileiro, claro. E é mesmo uma experiência inesquecível. Peixes, por conta da temperatura (fria) da água, são mais rijos e mais saborosos. Mesmo quando da mesma espécie, como por exemplo a Garoupa. Carnes têm cortes que não são os mesmos. E variedades muitas. Num restaurante, certa vez, provei 18 tipos incluindo rã, cachorro, cavalo, macaco e zebra (a pior de todas, seca demais). Crustáceos que não temos ‒ percebes, búzios, lavagantes, amêijoas (melhor é à Bulhão Pato). Tem também lampreia, mas essa espécie de peixe ou você ama, ou você odeia (nosso caso). Siris enormes, Santolas, Sapateiras. E camarões: desde bem grandes, como o Tigre; até o melhor de todos, de uma praia juntinho do Porto, o Espinho.
FAIXA DE PEDESTRES. Você pode atravessar as ruas, nas faixas de pedestres (conhecidas como passadeiras), sem susto. Carros param, inclusive os apressadinhos, todos, até que você passe. Em respeito aos que andam a pé. Chance zero de isso não acontecer.
FANTASMAS. Toda cidade tem os seus. Os do Recife moram no Solar de Santo Antônio dos Apipucos, onde viveu Gilberto Freire, lá onde servia seu famoso conhaque de Pitanga. Sem consenso sobre ser mesmo bom ou não. Em Olinda, num casarão que pertencia ao santeiro Elias Sultanum, colado ao Mercado da Ribeira. Só para lembrar, construído por volta de 1.560, onde se vendia carne, farinha, peixes e escravos. Em Lisboa, o poeta Fernando Pessoa. Prova disso é que o encontrei passeando na Rua Garret, perto da Livraria Bertrand. E decidi segui-lo, para ver onde iria. Depois de olhar para trás algumas vezes, dobrou a Rua Ivens e desapareceu numa corrida em grande velocidade. Dona Lectícia diz que era só um sósia, e desapareceu foi com medo de ser assaltado. Respondi que ela não entende nada de fantasmas.
FILAS. Nas ruas, há barracas onde se vende frutas o ano inteiro. Sardinhas, nos meses quentes. E castanhas portuguesas, quando faz frio. Só lamento é que não haja milho, cozido ou assado, por lá. Mas, quem quiser comprar algo, tem que entrar numa fila. E esperar. Que só será atendido quando chegar sua vez. Sem hipótese de acontecer o que se vê por aqui com todos passando, uns na frente dos outros, como se cada um fosse mais importante que cada outro. Com os carros, acontece o mesmo. Sobretudo quando há filas grandes, aqui com os espertinhos de sempre ‒ que podem ser vistos, em nossas ruas, aqueles que vem por fora dela e entram em sua frente, furando a fila, no exercício de uma espécie de Ética da Esperteza. E, lá, não.
LOMBADAS. Não são como as do Recife, que parecem feitas só para quebrar os amortecedores dos carros. Quase sempre sem pinturas no chão ou placas nas calçadas, avisando. E deveria, se o objetivo fosse mesmo diminuir a velocidade dos veículos. Em troca, temos pequenas elevações e, a seguir, algo como um ou dois metros para, no fim, voltar a essa rua. Tudo bem suave. Quem quiser saber como é vá ao Shopping RioMar que, bem na entrada, vai ver uma dessas.
MOTOS. Não há tantos acidentes de motos por lá. Ou quase não há. Vedado ziguezaguear, entre faixas, sob pena de multa cara, 1.250 euros (quase 10 mil reais). Aqui, no Recife, elas cortam os carros por todos os lados ‒ à direita, à esquerda, às vezes até por cima e por baixo (infelizmente). Parando em sua frente, nos sinais, como se fosse algo natural ou tivessem direito a isso. Diferente do que se dá, em Lisboa, quando motos ou bicicletas são considerados transportes públicos. Em princípio, podem trafegar só nas faixas dos ônibus (hoje, há 42 quilômetros dessas faixas em Lisboa). Sem riscos de virem para cima dos carros. O motociclista perde um pouco de tempo, no trânsito; mas, em compensação, não perde braços, esperanças, pernas, sonhos, a própria vida.
NOMES. Os dos bairros são especiais: Alcântara, Alfama, Bairro Alto, Benfica, Graças, Lapa, Madragoa, Mouraria, Olivais, Pastelo, São Vicente. Os das ruas: Beco da Bicha, Beco da Serra, Campos das Cebolas, Largo da Graça, Largo das Portas do Sol, Largo do Chafariz, Pátio das Damas, Rua da Alegria (onde morava Duda Guennes), Rua da Bela Vista, Rua da Cozinha Econômica, Rua da Mãe D’água, Rua da Prata, Rua da Rosa, Rua da Voz do Operário, Rua das Chagas, Rua das Flores, Rua do Ouro, Rua do Paraíso, Rua do Salvador, Rua dos Sapateiros, Travessa da Água da Flor, Travessa da Esposa, Travessa da Portuguesa, Travessa do Fala Só. Como se fosse quase poesia. Sem “medo que hoje se chame de Dr. Fulano de Tal”, salve Bandeira.
RADARES. Nas estradas (e nas cidades), em Pernambuco e no resto do Brasil, quando aparece um radar, o motorista reduz a velocidade; e, assim que o passa, então acelera. Lá, não. Dois exemplos. Um na estrada à beira mar que vai para Cascais. Há nelas muitas dezenas de sinais, até chegar ao destino. Sem razão aparente para existir e ligando nada a coisa nenhuma. Velocidade máxima, nesse caminho, é (na média) 60 quilômetros. Dando-se que, se alguém passar ali a mais que os tais 60 quilômetros, o próximo sinal estará fechado. O carro é obrigado a parar. E assim por diante. Conclusão, melhor é ir na velocidade indicada que acaba chegando antes. Multas para quem desobedecer são frequentes e triplicaram, desde a instalação do sistema. Quem tiver pressa, melhor pegar a Rodovia A5 pagando pedágio de 1,50 euros (menos que 10 reais). Outro exemplo é o dos Radares Inteligentes, que começaram a ser instalados no mês de setembro. Calculando a velocidade média entre dois radares. E, se passar da média permitida, você é multado. O que se espera é que as velocidades sejam mais baixas, ao longo de todo o percurso.
SEGURANÇA. À noite, voltando de um restaurante mesmo nas madrugadas, você pode sentar num banco de praça para conversar. Sem riscos de ser assaltado. Trata-se de uma experiência única, sobretudo para quem mora nas grandes cidades brasileiras. A de se sentir em segurança, nas ruas.
VINHOS. Não posso falar, que nunca bebi álcool na vida (fora meio gole de champagne, na passagem do ano, para dar sorte). Mas João Carlos Paes Mendonça, que faz (dizem) os melhores de Portugal, e também meus filhos, garantem ser muito bons. Devem ser mesmo. E, lá, bem mais baratos que os mesmos, se comprados aqui. Sem esquecer que vinhos estrangeiros pagam, lá, impostos de 70% sobre seu preço base. E ficam demasiado caros.
EM RESUMO. Dá prazer viver em cidades como essa. Ou passar tempos, de quando em vez. Para, sobretudo, respirar civilização. Por isso vale dizer que ela é mesmo ótima. Sonho com o dia em que ainda escreverei um artigo assim sobre a cidade onde vivo. Para Vicente Yáñez Pinzón, o “lugar de mais luz da terra”. A de Carlos Pena Filho (Guia prático da cidade do Recife), “Recife, cruel cidade/ Águia sangrenta, leão”. De Manuel Bandeira (Evocação do Recife), “Recife das revoluções libertárias/ Recife sem história nem literatura/ Recife sem mais nada/ Recife de minha infância”, aquela em que se fala “a língua errada do povo/ A língua certa do povo”. A de Ledo Ivo (Recife), “Amar mulheres, várias / Amar cidades, só uma ‒ Recife…/ E assim mesmo, diante do mar”. O mar do Recife, a Cidade Submersa do poeta Edmir Domingues. “Encheu-se-me de água o quarto/ Os livros caíram no teto/ Grandes peixes taciturnos/ Espiam-me o sonho imenso”. A cidade do Capibaribe, o Cão sem plumas de João Cabral, assim cantada por Austro Costa (em Capibaribe, meu rio)
Capibaribe, meu rio,
Que vida levamos nós!
Tu corres: em rodopio…
E há quarenta anos a fio:
sempre juntos ‒ e tão sós!
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