“Escrever é o requinte supremo”, escolhi essa frase de Pessoa (Soares, no Desassossego) para falar da tal Inteligência Artificial ‒ IA. E já peço perdão, amigo leitor, para dizer que nasci analógico. Acontece com a humanidade inteira. Diferente de quase todos é que continuei a ser, com poucas alterações, desde que me entendi por gente. Com o amigo Carlos Drummond de Andrade (confessa bem no início de seu Poema de sete faces, aquele do “Mundo, mundo, vasto mundo”), aconteceu algo parecido
Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos, ser gauche na vida.
E assim passamos, por nossos caminhos ‒ um analógico, o outro gauche. Creio até que é como que vou morrer; nem tão cedo, espero. Outro dia perguntei à neta Luiza, então com 9 anos, qualquer coisa ligada ao computador. E seu olhar, ao responder, correspondeu a um “como pode um velho ser tão analfabeto?”. Com muito custo, e penosamente, vou aprendendo algumas novidades, e cada uma delas corresponde a um espanto. Última foi a Inteligência Artificial. Dia desses, quis fazer teste para conferir se sabia mesmo escrever. Pedi colaboração de Silvio Meira, gênio. E o resultado, para mim, foi susto do tamanho de um bonde (até desconfio que a meninada de hoje nunca ouviu essa expressão antiga).
Primeiro quis saber se IA seria capaz de escrever poema no estilo de um escritor estrangeiro. Escolhi Flaubert, por muito gostar dele. Para definir o tema, pensei em seu romance mais famoso, Madame Bovary. Nele, Flaubert conta uma história real ocorrida, na França, em 1840. A aldeia normanda de Ry, que o autor conhecia bem, passa na literatura ser a de Yonville. O médico Delamare assume o rosto do marido, Charles Bovary. A bela e sonhadora Louise Colet se transforma em Emma, Madame Bovary. Na vida real ela se apaixona por um fazendeiro, Campon; enquanto, no romance, primeiro por Rodolphe, em seguida também pelo jovem Leon. Mais tarde, o desespero e o suicídio. Depois Flaubert diria “Madame Bovary sou eu”, mas essa é outra história. Para dificultar a missão de IA, pedi escrevesse um poema juntando os conceitos de amor, arrependimento e morte. Não demorou 2 segundos e editou, num francês castiço e rimado, belo poema que encerra dizendo
Enfin, l’étreinte
De la fin et du début
Amour et mort
Éternel súplice.
E, ainda, uma explicação (resumo): “A voz poética ainda reflete sobre o amor não vivido plenamente, o arrependimento (ou a falta dele) diante da morte iminente, e a ironia de compreender o valor do amor apenas no final da vida. O tom melancólico e reflexivo foi preservado, mesmo que de forma mais concisa”.
Em seguida, sobre os mesmos temas de amor, arrependimento e morte, pedi escolhesse um heterônimo de Fernando Pessoa. E IA (resumo) “Para esta tarefa, escolherei o heterônimo Álvaro de Campos, conhecido por sua poesia modernista, repleta de emoções intensas, angústia existencial e um estilo frequentemente livre e dinâmico”. Mesmo que eu teria escolhido. E escreveu, efetivamente, um longo texto no seu estilo, que diz no fim
Que a morte venha, então, não como punição, mas como epílogo
De uma vida vivida em fragmentos, em hesitações.
Talvez no último suspiro eu encontre a coragem
Que me faltou em todas as batidas aceleradas do coração.
Como complemento, outra explicação (resumo): “O poema explora os temas solicitados ‒ amor, arrependimento e morte ‒ através da lente característica deste heterônimo, mesclando reflexão filosófica com angústia pessoal”. Assustado com tanta erudição, lembrei definição do próprio Álvaro de Campos (sem título, sem data), “minha inteligência” (artificial, talvez) “tornou-se um coração cheio de pavor”.
Pensando no Brasil, lembrei do conhecido soneto Versos Íntimos, do enorme Augusto dos Anjos, aquele que acaba dizendo
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
E pedi, a IA, um soneto, como os dele, sobre esse tema, Beijos. Para comparar o estilo dos dois, Augusto e IA. Primeiro, uma explicação (resumo): “Este soneto tenta emular o estilo característico de Augusto dos Anjos, incorporando: 1. Vocabulário científico e mórbido… 2. Imagens de decomposição… 3. Contraste entre o prazer físico da vida e a realidade da morte… 6. Tom melancólico e mórbido, típico de sua poesia” E depois, com título e tudo, veio
Ósculo Pútrido.
Beijos, eflúvios de lascívia e podre,
Trocados outrora em lábios palpitantes,
Agora são bactérias devorantes
No imo da cova onde o verme me rodre.
Quisera eu que o Cosmos os engodre,
Esses beijos, micróbios flamejantes,
Que em vida foram êxtases constantes
E hoje são pus que na entranha se modre.
Na língua inerte, onde outrora a saliva
Misturava-se em férvida luxúria,
Hoje pulula a larva corrosiva.
Ó beijo! Efêmero prazer da carne viva,
Transmutado em putrescente incúria,
És da Morte a gargalhada altiva!
Como Augusto, IA usou palavras incomuns, entre elas “imo (o que está no mais fundo). E, curioso, até inventadas (rodre, engodre, modre). Perguntei a Alexei Bueno, maior especialista em Augusto, se era um recurso usado pelo mestre paraibano, e ele confirmou que não. Razão pela qual, nesta sagração de esperteza, IA já começa por exibir um estilo meio brasileiro.
Para encerrar, e num surto de megalomania, pedi a IA uma crônica no meu próprio estilo. Certo de que diria qualquer coisa como “Desculpe, não sei quem é”. Ou “Peça escritor mais conhecido”. Que nada, caro leitor. Primeiro, novamente, explicação (resumo): “Esta crônica busca capturar alguns elementos do estilo de José Paulo Cavalcanti Filho: 1. Observação do cotidiano com um olhar reflexivo. 2. Uso de um objeto ou evento aparentemente banal como ponto de partida para reflexões mais profundas. 3. Linguagem clara e direta, mas com toques poéticos. 4. Conclusão que convida à reflexão, sem ser didática. 5. Mistura de narrativa pessoal com considerações mais amplas sobre a condição humana. O tema escolhido ‒ nossa relação com o tempo ‒ é algo que Cavalcanti Filho poderia abordar, explorando como pequenos eventos podem nos levar a questionar hábitos e valores arraigados”. E assim nasceu esse texto da IA,
“O Relógio Parado.”
“Naquela manhã de domingo, acordei com a estranha sensação de que algo estava diferente. O silêncio era mais denso, quase palpável. Fui até a sala e lá estava ele, o velho relógio de parede, imóvel. Presente de meu avô, aquele relógio marcara o compasso de nossas vidas por décadas. Seu tique-taque era a trilha sonora de nossas reflexões, discussões e silêncios. Agora, sem aviso, decidira parar. Tentei dar corda, ajustar os ponteiros. Nada. Pensei em chamar um técnico, mas hesitei. Talvez fosse um sinal. Quem sabe o velho relógio, em sua sabedoria mecânica, decidiu que era hora de nos ensinar algo sobre o tempo? Naquela semana, percebi como vivíamos escravizados pelos minutos. O café da manhã apressado, o trânsito frenético, as reuniões cronometradas. Sem o relógio, redescobrimos o prazer das conversas sem pressa, das refeições saboreadas, do ócio criativo. O técnico veio na sexta-feira. É simples, disse ele, só precisa de uma peça nova. Agradeci, mas não deixei que consertasse. O relógio continuaria parado, não por defeito, mas por escolha. Às vezes, é preciso que o tempo pare para que possamos, enfim, vivê-lo”. É muito, para mim.
No princípio dos tempos o homem aprendeu a se comunicar com desenhos nas cavernas usando sangue, tintas rudimentares feitas de barro ou plantas, tudo só com as mãos. Depois vieram gravetos na areia, penas, tintas, papiros e papéis, com a escrita. Em seguida, lápis e canetas, máquinas de escrever, computadores. Um aposentado o outro, que o antecedia. O risco é que algum dia, talvez muito em breve, a IA acabe tornando mãos, gravetos, tintas, papéis, lápis, canetas, máquinas de escrever, computadores e os próprios homens, obsoletos.
José Paulo Cavalcanti Filho