De volta às conversas, hoje só no assunto cemitérios e afins, em livro que estou escrevendo (título da coluna).
Dona ADELAIDE. Velório da mãe, no Cemitério de Santo Amaro (Recife). Disse, a ela, o de praxe
– Meus pêsames.
Olhou para mim de um jeito diferente, como se estivesse nas nuvens, e perguntou
– Pêsames por quê?, meu filho.
– Sua mãe.
– O que é que ela tem?
Sem acreditar, apontei para a morta
– No caixão.
– O que é que minha mãe está fazendo ali?
– Acho melhor perguntar a ela.
E Maria Lectícia me expulsou do recinto.
ALBERTO TEIXEIRA, empresário. Em Arouca (cidade próxima do Porto, Portugal), num Dia de Finados, foi rezar no túmulo da família. E comentou, desolado, com o sobrinho José Brandão
– O lugar está à pinha (cheio). Vim encontrar meus mortos e vejo só vivos dos outros.
AMERICANO, amigo que vivia de pescar lagostas na ilha de Santo Aleixo. Conto só o triste dia em que se suicidou sem querer. Chegou em casa quase meio-dia, quando mulher e filhos iam já saindo para o culto
‒ Podem ir que vou depois.
Foram suas últimas palavras. De noite, ao voltar, a família encontrou seu corpo junto da panela, na beira de um fogão com o gás aberto. Tentou, mas não conseguiu, acender o fogo com fósforos é algo complicado para quem tem na cabeça cachaça demais. E dormiu ali mesmo, no chão, respirando aquele gás. Para nunca mais acordar. Pobre americano.
CARLOS ALBERTO SARDENBERG, jornalista. Chegou sem saber qual o velório certo (havia cinco, alí). Então perguntou, no primeiro,
– Quem é o morto?
E o cidadão, apontando para um caixão,
– É aquele ali dentro.
DIVANE CARVALHO, jornalista. Algumas vezes, a gente se arrepende do que diz. Foi o que ocorreu naquela manhã de domingo, seu aniversário. Liguei bem cedo
– Parabéns, Divane, desejo que tenha um dia esplendoroso.
– Acho meio difícil, Zé Paulo. Que estou aqui, no necrotério, esperando o corpo de meu marido (Luciano Fraticelli) para enterrar ainda hoje.
ELIAS SULTANUM, santeiro. Comprou casa velha junto ao Mercado da Ribeira (Olinda); só para lembrar construído, por volta de 1.560, onde se vendia carne, farinha, peixes e escravos. Já morando nela, começou uma reforma. Só que passou a ouvir uma barulheira que não tinha fim. Na quarta noite sem dormir, foi até o meio da escada e anunciou
– Atenção, senhores fantasmas, acabaram as reformas. A casa fica do jeito que está.
Em seguida, foi para o quarto e dormiu bem. Fim das reformas, fim dos barulhos. E ninguém, até hoje, conseguiu explicar o que aconteceu.
FERNANDO SABINO, escritor. No fim, vítima de um câncer no fígado, se escondia na Rua Canning (Ipanema, Rio). Mas teve o cuidado de, antes de partir, deixar escrito seu epitáfio:
‒ Aqui jaz Fernando Sabino,
que nasceu homem e
morreu menino.
FILINTO ELYSIO (nome arcádico de Francisco Manuel do Nascimento, 1734-1819), poeta. Parte do grupo conhecido como Ribeira das Naus, teve uma vida complicada. Padre, se apaixonou por Maria, filha da marquesa de Alorna e freira de um Convento. Acabou processado pela Inquisição, ainda no Século XVIII. Para um amigo, que acabara de enviuvar, escreveu curioso Epitaphio
– Minha esposa aqui jaz.
Que bem que faz.
Por sua e minha paz.
GERMANO HAIUT, ator. Ao sair do Cemitério dos Judeus, no Barro, me disse
– Taí, se há uma coisa que não entendo é muro de cemitério. Porque os de fora não querem entrar e, quem está dentro, não pode sair.
HENRIQUE DE RESENDE, advogado. No Cemitério de Cataguazes (MG) está esse epitáfio, no seu túmulo, escrito por ele mesmo
‒ Contra sua vontade, bem se entende,
Sempre amando a vida como outrora
Aqui repousa Henrique de Resende
Que preferia repousar lá fora.
NELSON DOS ANJOS, diplomata. Um belo dia, em julho de 2022, recebemos mensagem de sua mulher Clementina
– Nelson estava bem e, de repente, faleceu!!!
Saudades do amigo querido.
OTTO LARA REZENDE, escritor. Eram quatro amigos inseparáveis que formavam grupo inspirado nos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, personagens descritos na terceira visão profética do apóstolo João, está no livro bíblico da Revelação ‒ fome, guerra, morte, peste, que acontecerão antes do fim dos tempos. Agora eram os Quatro Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse ‒ Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto, o que mais gostava de conversar no grupo. Um dia Sabino entregou, a Otto, seu epitáfio ‒ que depois a família, por implicância, recusou.
‒ Aqui jaz Otto Lara Resende,
Mineiro ilustre, mancebo guapo!
Deixou saudades isso se entende:
Passou cem anos batendo papo.
VICENTE PHAELANTE, advogado (e parceiro no bridge). Tinha irmã, que o criou, morando no interior. Com esclerose e diabetes avançados. E a coitada, belo dia, preparou bolo de chocolate que degustou com uma Coca-Cola de dois litros. Resultado, morreu em pouco tempo. E ninguém pensou em suicídio. Por não haver bilhete nem comportamento nenhum indicando estar triste. Deve ter sido mesmo a cabeça que voou. Vicente decidiu que seria enterrada no jazigo da família, aqui no Recife, e foi até lá para buscar o corpo. Acertou com uma funerária local que o levasse direto para o cemitério de Santo Amaro, na manhã seguinte bem cedo. Não tinha sentido fazer velório que ninguém a conhecia mesmo, na capital. Falou com o Diário de Pernambuco, para o anúncio fúnebre. E a mulher do jornal
– Qual tipo quer?
– O mais barato.
Explica-se. Com a impressão do jornal feita em placas de chumbo, naquele tempo, seria preciso apenas três. Uma, com o nome da morta. Outra com o de Vicente, que convidava para o enterro. E a terceira, para detalhes. O resto vinha com o palavreado de sempre, já tudo pronto. Era mais barato por isso. Ocorre que dia seguinte, no Diário, apareceu a morta convidando para o enterro dele. Algum problema no telefone. Liguei, assim que li,
– Alô.
– É você?, Zé Paulo.
– Vicente?!!!
– Ele mesmo.
– Você está morto ou vivo?
Explicou e pediu fosse ajudá-lo, na tarefa de receber os amigos que iriam ao cemitério. O caixão estava já sob cuidados do pessoal da funerária, junto do jazigo. Na entrada Vicente, com um caderninho na mão, anotava o nome dos que chegavam, explicava o que ocorreu e dizia
– Vão embora não que tem o enterro da minha irmã.
Em resumo, foi o mais festivo da história do cemitério, com pequena multidão para homenagear uma desconhecida. E, todos, muito animados. Tivesse vendedor de cerveja, no local, e não iria sobrar nada. Em seguida fez lista por ordem alfabética dos presentes, datilografou e pôs na carteira. A partir daí, toda vez que o encontrava, era
– Vicente, morreu… (um nome qualquer), vamos para o enterro?
E ele, bem calmo, abria a carteira, tirava a listinha e conferia. Se o nome não estivesse nela, e até morrer de verdade, dizia sempre o mesmo
– Vou não. Só vou a enterro de quem foi no meu.
José Paulo Cavalcanti Filho
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