Mais conversas, hoje só com escritores, em livro que estou escrevendo (título da coluna).
GILBERTO FREYRE, escritor. Assumiu a Cadeira 23 da Academia Pernambucana de Letras em 28/10/1986. Leu o Discurso de Posse, com mais de 100 páginas, sentado na mesa onde ficam as autoridades. E não em pé, no púlpito, como é usual. Na sequência, viria o Discurso de Recepção. A ser feito por seu mais íntimo amigo, o sonetista parnasiano Waldemar Lopes. Quando Lopes acabou de saudar as autoridades, e iria começar sua fala, Gilberto agarrou o microfone do presidente e disse
– Acaba logo com isso, Waldemar, que minha bunda está doendo.
* * *
Apesar de brigar com Oswald de Andrade, sempre o elogiava, reconhecendo ter sido o único a permanecer fiel aos ideais da semana de 22. E ele próprio contou essa história, numa conferência. Quando morreu o cangaceiro Virgulino Ferreira (Lampião), Oswald reclamou:
– Puxa, e por que não aproveitaram para também matar Gilberto Freyre?
HERMILO BORBA FILHO, romancista. Quarta feira, 26/6/1976, ligou
– Tudo bem, Zé Paulo?
– Tudo, Hermilo.
– É o seguinte. O coração está ruim, vou morrer até a próxima quarta e preciso muito falar com você.
– Pare com isso, amigo. Seja como for, na volta pra casa passo aí.
O apartamento ficava na Rua dos Navegantes. Conversamos no terraço.
– Como vou morrer logo, preciso que você redija meu testamento.
Deu os comandos. Anotei. Passamos a falar sobre a morte, como se fosse algo natural. E, para ele, era mesmo. Perguntei:
– O que significa isso para quem, como você, não acredita em Deus? É o fim de tudo? Ou vai ficar, no exemplo e nas ideias?
Nesse preciso instante, explodiu na rua um transformador da rede elétrica. O bairro inteiro ficou às escuras. E ele
– Combateremos na sombra.
Reproduzindo a sentença do general Leônidas, nas Termópilas. Fiquei em silêncio. Admitindo fosse apenas uma frase de efeito, por conta da falta de luz. Mas, como no verso de Drummond (O caso do vestido), “boca não disse palavra”. E compreendi ser resposta à minha pergunta. Para bom entendedor, meio silêncio basta. Uma grande resposta. Coisa dele. Ficamos em silêncio muito tempo, ainda. Só nos olhando. E ele ria, dava para ver no branco dos dentes. Até que falei
– É tudo?, Hermilo.
– É tudo, Zé Paulo.
– Adeus.
– Adeus.
Um adeus diferente dos de todo dia, esse era verdadeiramente definitivo. Então lhe dei um beijo na testa e fui para casa. Na mesma noite, redigi o testamento. Hélio Coutinho, tabelião, lavrou no livro dia seguinte. Ele assinou. Sexta, recebeu os traslados e deixou nas mãos de sua companheira, Leda Alves. Sábado, foi para o hospital. E morreu na quarta seguinte, como prometeu. Hermilo era homem de palavra.
JORGE LUIS BORGES, romancista. Numa entrevista (4/2/1987) para Roberto Dávila, declarou:
– Quase não li romances. Fora Joseph Conrad que, para mim, é O Romancista.
– Nem mesmo Cem anos de solidão?
– Completei só os primeiros 50. Mas é um excelente livro, eu acho.
Em maio de 1976, escolhido pelo Comitê da Academia Sueca na reunião preparatória em maio, acabou não sendo confirmado na de novembro (perdeu o Prêmio Nobel de Literatura para Saul Bellow). Porque, em 22/09 deste ano, visitou o ditador Augusto Pinochet. E, conservador, disse numa fala infeliz: “Não sou digno da honra de ser recebido pelo senhor, Presidente… Na Argentina, Chile e Uruguai estão sendo salvas a liberdade e a ordem. Isso acontece num continente anarquizado e solapado pelo comunismo”. A partir daí, nunca mais seria lembrado. E o comportamento de Gabriel García Márquez (o tal dos Cem anos…, está no seu livro Crônicas), é exemplar.
– Nada nos agradaria tanto a nós, que somos ao mesmo tempo seus leitores insaciáveis e seus adversários políticos, sabê-lo por fim libertado de sua ansiedade anual.
Borges morreria, 10 anos depois, angustiado e cego. Em metáfora, é como se tivesse desistido de ver o mundo por seus olhos tristes.
PAULO FRANCIS, articulista. Almoço no restaurante do hotel Ouro Verde, só nós três. Paulo, querendo agradar Millôr Fernandes,
– Você é o maior escritor vivo da língua portuguesa.
– E por que tanta restrição, Paulo?
– Não entendi.
– Por que vivo? E por que só da língua portuguesa?
ROBERTO DA MATTA, antropólogo. Dei parabéns por ter recebido o prêmio Machado de Assis (votei nele), da ABL, e respondeu
‒ Você é o melhor amigo de infância que fiz depois de velho.
RUBEM BRAGA, cronista. Era de Cachoeira de Itapemirim, como Roberto Carlos. E andou pelo mundo. Até dirigiu a Folha do Povo, aqui no Recife, durante alguns meses. Após o que foi para o Rio, de onde nunca mais saiu. No fim já não falava, por conta de um câncer na laringe. Aniversário de Millôr (16/08/1990), na cobertura de Luiz Gravatá – Rua Barão da Torre (Ipanema). Ao subir as escadas, que levavam ao salão da cobertura, cada um de nós via, em frente, Rubem com sua garrafa de Johnny Black. E ele acenava, rindo, em uma espécie de saudação. Como já não podia conversar, a gente respondia de longe com outros acenos. E a festa continuou, em sua volta. Até quando Chico Caruso inventou de promover um concurso de saltos ornamentais em piscina rasa. Deu o primeiro salto, quebrou o nariz ao bater no fundo e sujou a piscina com sangue. Após o que fomos todos embora. Rubem, encharcado com sua bebidinha, já não conseguia nem andar. Preferiu dormir ali mesmo. E, sem maiores preocupações, tirou a roupa, como fazia todas as noites, e deitou num sofá. Dia seguinte, sobe Nerinha para arrumar o local. Foi quando viu nosso cronista encolhido, no tal sofá, e gritou:
‒ Seu Gravatá, tem um homem nú aqui em cima.
Rubem acordou com a gritaria, vestiu-se e foi para seu apartamento bem perto, na cobertura do Edifício Barão de Gravatá (Praça General Osório). A partir desse dia, escondeu-se do mundo. Dois dias antes da última internação, no Hospital Samaritano, reuniu-se com os amigos Edvaldo Pacote, Moacir Werneck de Castro e Otto Lara Resende, para uma despedida. E, em 19/12/1990, acabou. Só depois se vendo que aqueles cumprimentos, na festa, foi o jeito que encontrou para dizer adeus aos amigos. Viva Rubem Braga!
* * *
Todas as manhãs se comunicava com Millôr Fernandes (os apartamentos eram próximos), não por telefone mas por sinais com os braços que aprenderam na Marinha. Millôr:
– B/o/m/d/i/a/!
E Rubem, exagerado como sempre, mexia os braços meia hora para responder
– B/o/m/d/i/a/ m/e/u/ c/a/r/o/ c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a/ e/ d/e/ m/a/d/r/u/g/a/r/!
RUY CASTRO, da ABL. Carioca da gema, foi contratado como jornalista para passar pouco tempo em São Paulo e voltou só 16 anos depois. Perguntei
– Por que demorou tanto, amigo?
– É que o Rio seduz e São Paulo suborna.
TRAVA-LÍNGUAS. Num livro de Luisa Ducla Soares (Destravalinguas), há curiosos trava-línguas típicos de Portugal, como esse
Era uma velha relha, bufelha,
Saracotelha e cotrimbelha
Casada com um velho relho,
Bufelho, saracotelho
E cotrimbelho.
Diz a velha relha, bufelha,
Saracotelha e cotrimbelha
Ao velho relho, bufelho
Saracotelho e cotrimbelho:
Vamos à caça raça, bufaça,
Cotrimbaça de um coelho
Relho, bufelho
E cotrimbelho?
ZUENIR VENTURA, da ABL. Em seu apartamento de cobertura estava, para um jantar, Miguel Souza Tavares ‒ autor de Equador, com milhões de exemplares vendidos. Só para lembrar Zuenir escreveu Inveja (numa coleção sobre os 7 pecados capitais). Miguel, falando no celular, não percebeu um batente no jardim, tropeçou e quase caiu lá de cima. O que seria morte certa. Zuenir, assustado, disse já antever a manchete dos jornais no dia seguinte:
‒ Autor de Inveja mata autor de sucesso.