Mais conversas, hoje só com médicos, em livro que estou escrevendo (título da coluna).
ANA VASCONCELOS, advogada. O médico olhou para ela com olhos de pena
‒ Você tem câncer, Ana.
‒ Qual o tratamento?
‒ Nenhum, infelizmente.
Decidiu ir a São Paulo e uma junta, com mais quatro médicos, confirmou esse diagnóstico. Melhor voltar e morrer no Recife. Só que não conseguia suportar essa espera e decidiu abreviar sua história. Melhor o fim do espanto que um espanto sem fim. Como não tinha coragem para se jogar de um edifício ou dar tiro na cabeça, escolheu fazer isso dentro de seu carro. Entre segunda e terça, madrugada (sem ninguém na rua para ser atropelado), em reta que começava na Ponte Giratória e findava em muro de concreto, grosso, da Marinha, no Porto do Recife. Lugar perfeito para um acidente automobilístico. Acelerou o velho Gol até chegar a velocidade máxima. Os braços, ao segurar o volante, que tremia, estavam já dormentes (foi quando percebeu que morreria sem dores). E viu aquele muro se aproximar. Faltava pouco. Só que um pneu voou e o carro começou a dar voltas. Sem capotar, sorte dela. Até que parou. Saiu, era inacreditável, estava de frente para o tal muro. A menos de um palmo. Então pensou:
‒ É coisa de Deus. Ele não quer que eu morra e me trouxe aqui para dizer qual missão reservou para mim.
Olhou em volta e viu que, ali, havia só marinheiros e mulheres tentando sobreviver. Seu público não seriam aqueles marinheiros, com certeza. Decidiu criar uma instituição memorável, a Casa de Passagem dedicada a abrigar, proteger e ensinar ofícios dignos a prostitutas que eram, depois, colocadas no mercado de trabalho. E Ana bem, sem mais notícias do tal câncer. Enquanto começaram a morrer os médicos que deram aquele diagnóstico. Na última vez que a vi, disse, brincando:
‒ Ainda não morreu, amiga?
‒ Que nada, Zé Paulo, e já decidi: só morro depois de enterrar os cinco médicos que me condenaram.
‒ Até agora…
‒ Quatro já foram. Só falta um.
CARLOS ROBERTO MORAES, cirurgião cardíaco. Pierre Gondim, em Londres, lembrou
‒ Há dois tipos de cirurgiões: os que bebem e os que já beberam o suficiente.
* * *
Me perguntou:
– Quantos charutos você fuma por dia?
– Só um. Mas todo charuteiro mente muito.
ELIAS SULTANUM, santeiro. Comprou casa velha junto ao Mercado da Ribeira (Olinda). Já morando nela, começou uma reforma. Só que passou a ouvir uma barulheira que não tinha fim. Na quarta noite sem dormir, foi até o meio da escada e anunciou
– Atenção, senhores fantasmas, acabaram as reformas. A casa fica do jeito que está.
Em seguida, foi para o quarto e dormiu bem. Fim das reformas, fim dos barulhos. E ninguém, até hoje, conseguiu explicar o que aconteceu.
Dona JOANINHA, doméstica. Quinta-feira. Maria Lectícia informou que acabou bem uma operação de minha mãe. No ombro, sem riscos. Disse que estava no quarto 405 do Hospital Santa Joana e completou lembrando que já recebia visitas. Tradução, era para ir. Logo. Manda quem pode (ela), obedece quem tem juízo (eu). Ou pensa que tem, o que dá no mesmo. Não sei como, entendi Hospital Português. Errado, claro. Parei longe, calor danado, enfrentei fila no elevador, até que cheguei no quarto andar. Quando abri a porta do 405, lá estava uma mulher, com certeza cliente do SUS, que me olhou assustada. Ao perceber o endereço errado, e para não perder a viagem, disse:
– Mamãe!!!
– Eu não sou sua mãe, não.
– Mãe desnaturada, que não reconhece o filho.
– Tenha calma, senhor. Vamos conversar. O que lhe faz acreditar que sou sua mãe?
– É simples. Minha mulher disse que mamãe estava no quarto 405. É esse. Logo, a senhora é minha mãe.
– Está errado. Pode acreditar que não sou sua mãe.
Ficamos conversando por bom um tempo. Disse que podia lhe chamar de Joaninha. Contou sua vida simples, sem eventos notáveis, igual à de tantas. No fim, desejei melhoras e fui saindo. Quase na porta, ela gritou:
– Meu filho!!!
Achei graça e respondi
– O que é, mamãe?
– Volte amanhã para conversar que vivo aqui tão sozinha.
Dia seguinte, sexta-feira, mandei uma cesta com frutas. E, segunda, retornei ao hospital. Para conversar, como pediu. Abri a porta, o quarto estava já vazio. Não tive coragem de perguntar o que havia acontecido com ela e fui embora, rezando que estivesse em casa. Beijos, Dona Joaninha.
JOEL DATZ, um dos “irmãos eventos” – conhecidos, no Recife, por irem a todas as recepções, de batizados a conferências. Vinha caminhando pela Manuel Borba quando sentiu dores típicas de um enfarte. Como estava bem perto de unidade do SAMU, em frente ao antigo Cine Boa Vista, foi andando até lá.
– Estou tendo um enfarte e preciso que me levem, de ambulância, para o Procape (onde acabaria morrendo, só que muitos anos depois).
– Impossível, senhor. Que, segundo nossos regulamentos, só podemos atender casos por telefone. E fica tudo gravado.
– Mas vou morrer aqui, na sua frente?
– Infelizmente, vai.
Foi quando viu, do outro lado da rua, um orelhão. E seus bolsos viviam cheios de fichas (num tempo em que ainda não havia celulares). Foi até lá e ligou.
– É do SAMU?
– Sim.
– Estou tendo um enfarte. Podem me levar para o Procape?
– Claro, senhor, onde está?
– Bem na sua frente.
LUZILÁ GONÇALVES, escritora. Madrugada, ligou amiga pedindo ajuda que o marido estava quase morto. Luzilá teve que ir a colégio de freiras que acolhiam padres. Encontrou um, já bem velhinho, e disse que precisava dele para dar a Unção dos Enfermos. Tudo acertado, inclusive o preço. Mas o velho quis tomar café, antes de partir. A freirinha que lhe atendeu, com toda paz do mundo, preparou tapioca e cuscuz que ele comia com prazer. Sem pressa. E o tempo ia passando.
– Padre, queria lembrar que o homem está se acabando.
– Tenha calma, filha, Deus é paciente.
– Deus eu sei que é, padre. Só não estou certa é que o doente queira esperar tanto tempo.
Afinal, chegaram no apartamento. O padre leu Breviário e belo Ofício aos Mortos. Diante de um paciente largado na cama, lívido, com os olhos fechados. E todos rezando. Ocorre que, de repente, o quase defunto deu um pulo
– Que merda é essa?! A gente nem pode mais dormir em paz?! Porra!!!
Em resumo, o homem estava era de porre. Coma alcoólico. Foi só engano da quase viúva.
MARIA DE JESUS ALVES, cirurgiã. Começou a operar, no Hospital Getúlio Vargas, uma criança com a perna quebrada por conta de um atropelamento. A avó chegou apreensiva, na portaria, e pediu informações de como estava seu neto William. O médico Octávio (filho de Geninha e Baby) Rosa Borges respondeu:
– Está lá em cima (no quinto andar, onde ficava o bloco cirúrgico), nas mãos de (Maria de) Jesus.
E a velha quase morreu do susto.
MIGUEL SOUZA TAVARES, escritor. Seu bisavô, Thomás de Mello Breyner, 4º Conde de Mafra, Catedrático de Medicina e médico pessoal do rei, era diretor do Hospital São José. E, lá, enfermeiras formalizaram uma reclamação.
‒ Os estudantes ficam passando a mão em nossas bundas. Exigimos providências.
‒ Perdão, mas não vejo solução possível para o problema, enquanto os estudantes tiverem mão e vocês tiverem bunda.
OSCAR COUTINHO, clínico geral. Provocando, me disse
– Está pensando que Medicina é fácil como Direito?
– Pode até não ser, amigo. Mas tem uma vantagem, e grande. Erro de advogado fica no processo; enquanto, o do médico, a terra come.
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