1. RIO GRANDE DO SUL. Antônio Pavão, da Academia Pernambucana de Ciências, recebeu recado que lembra Fernando Pessoa (Ficções de Interlúdio), “Não quero o presente, quero a realidade/ Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede”. Que a PM do RS já não consegue evitar saques. Tanto que o governo local já pensa em decretar um GLO, para enfrenta essa guerra. Para confirmar isso a filha de Pavão, que mora em Porto Alegre, lhe mandou mensagem que dá uma boa dimensão da tragédia humana por trás das chuvas:
‒ Gente, cena de guerra aqui. Muito triste. O prédio está sem água e conseguimos encher uns baldes e panelas. Água mineral está em falta na cidade, mas temos um garrafão de 20 litros. As facções estão saqueando tudo. Mantimentos. Um horror. Nem os brigadianos estão com coragem de ir. Tudo armado nessas cidades alagadas.
2. MADONNA. Esse último evento, no Rio, me lembrou o amigo Oliveira de Panelas. Numa cantoria, pediram que desse uma definição de globalização e ele respondeu assim:
– Certo dia eu estava em Hollywood
Em Marlboro, ou talvez no Arizona
Foi então quando encontrei-me com Madonna
Que convidou-me para um banho no açude.
E se a galega mostrou ter muita saúde
Eu também lhe mostrei ter muito gás
E nos domínios das táticas sensuais
Tudo quanto ela quis, fiz em inglês
E depois perguntei em português
O que é que me falta fazer mais
Tinha mesmo razão. Que Madonna é baixinha, velhota, loura, canta numa língua que Oliveira não entende, um tipo de música que ele não gosta. E como pode esse tipo ser musa de nosso cantador?, eis a questão. Em resumo, Oliveira foi perfeito em sua definição.
3. A ARTE DE SER CAMALEÃO. Os capitéis dos templos romanos eram povoados por figuras animais que vieram das páginas do Apocalipse. Expressando-se nessas figuras receios, remorsos, virtudes, o mel e o fel que habitam o coração do indeterminado cidadão comum. Avançamos no tempo. Até (Friedrich) Nietzsche. Que, em Assim falou Zaratustra, fez seu bestiário baseando, na moral, a busca de poder que eleva o Übermensch (em tradução livre, o Novo Homem). Inspirado nesses capitéis, representava esse homem com figuras animais. O camelo, com a moral pesada do eu devo. O menino, com a moral simples do eu sou. E o leão, com a moral onipotente do eu quero.
Nesse zoológico de símbolos, será legítimo perguntar qual animal deveria representar a imprensa. Mais amplamente, os meios de comunicação. E, se assim for, talvez devêssemos escolher o camaleão. Por sua infinita capacidade para mudar sempre. Com a moral ambígua do eu me adapto.
Essa marca vem de longe. Nos livros de jornalismo, por exemplo, sempre se proclama que tudo começou com (Johannes) Gutenberg (1398 – 1468). Só que não é bem assim. Os tipos móveis não foram inventados por ele. Já sendo usados, na China e na Coréia, milhares de anos antes. Feitos em porcelana, madeira e metal. O título de Pai da Imprensa, que lhe é atribuído, se deve ao fato de que teria editado o primeiro livro ‒ a Bíblia de Gutenberg, como se diz ainda hoje. Problema é que essa Bíblia de Gutenberg nunca existiu. Trata-se, apenas, de lenda. Como tantas outras.
A história real é outra. Para pagar dois empréstimos de 800 florins, cada, o pobre do Gutemberg foi obrigado a entregar em 1455, ao banqueiro Johannes Fust, materiais e obras em preparação. Entre elas, o projeto de uma Bíblia de 42 linhas. Apenas projeto. Que acabou depois realizado, inteiramente, pelo tipógrafo Peter Schöffer.
Quando veio a público a Bíblia de Shöffer e Fust, em 1456, já Gutenberg havia voltado ao anonimato em que sempre viveu. Sem que se conheça um único livro impresso por ele. Nem havendo sequer um retrato seu. Nada. Ficou apenas o anúncio, alardeado por ele nos bons tempos, de que estaria fazendo uma Bíblia. Que nunca fez, mais uma vez se diga. Apesar disso, e por força das repetições, continuamos a falar na Bíblia de Gutenberg. Um caso claro em que a adaptação camaleônica de uma mentira, e sua repetição continuada, finda por se converter em verdade. O que vem hoje se repetindo com desalentadora preferência, não custa lembrar, em nosso Brasil de hoje.
4. GUARDIÕES. Em conhecido conto de Kafka (Diante da Lei), um homem do campo encontra o Lugar da Lei protegido por um guardião. E pede autorização para entrar. Talvez até nem devesse pedir, que a porta da Lei estava (aparentemente) aberta. Mas o guardião não deixou. Ainda advertindo que além dele ainda existia, de sala para sala, guardas cada vez mais fortes, a não permitir ninguém entrar. O homem do campo não esperava reação tão dura. Que a Lei, pensava, deveria ser acessível a todos. Mas, por humildade (ou prudência), ficou esperando lhe fosse concedida tal autorização. E assim permaneceu por dias, meses e anos. Até perceber, já bem velho, que a “indesejada das gentes” (assim Bandeira se referia à morte, na sua Consoada) era inevitável. Então, com um resto de coragem, perguntou ao guardião: “Se todos aspiram à Lei, como é que durante todos esses anos ninguém mais, a não ser eu, pediu para entrar?”. Para ouvir a resposta do guardião, “Porque só para você era feita essa porta”. Lembro do escritor de Praga, com a sensação de que esse homem do campo era, na verdade, o povo brasileiro.
José Paulo Cavalcanti Filho
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