“O que há num nome?”, se pergunta Shakespeare (em Romeu e Julieta). Porque, nesse nome, pode haver tudo e nada, amor e perdição, liberdade, sonho, mistério, miséria, Destino, tragédia, o espanto. E por trás dele sobrevivem, com frequência, todas as contradições da alma humana. Saramago seguiu nessa trilha, mais tarde (em Todos os nomes), ao fazer uma pergunta enigmática, “conheces o nome que te deram?”. Ironicamente, nesse livro, apenas um personagem tem nome, quase um não nome, que é José. E no Ensaio sobre a cegueira como que conclui, sem mais esperanças, “os nomes deixam de ter sentido”.
E numa data o que haverá?, eis a questão. Em Portugal são tantas importantes: 1128 (Batalha de São Mamede), 1139 (Ourique), 1383 (Aljubarrota), 1578 (Alcácer Quibir), 1580 (quando Camões encontra sua paz), 1640 (Restauração Portuguesa), 1755 (o grande terremoto), 1910 (República), 1935 (quando morre o homem Fernando Pessoa e começa a nascer a sua lenda). Importante por conformar, em cada uma delas, o próprio coração da nação portuguesa. Aquilo que há, nela, de mais sagrado. Faltando, nessa relação, 1974 ‒ quando se festeja, em 25 de abril, a Revolução dos Cravos. Agora (ontem), comemorando 50 anos.
Assim se chama, toda gente sabe disso, por ter a população distribuído cravos aos soldados que participaram do movimento. Zeca Afonso até anteviu (em Grândola, vila morena) “O povo é quem mais ordena”. A deusa Sophia de Mello Breyner Andresen anunciou (em 25 de abril), alegremente, “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. Manuel Alegre (em Lisboa perto e longe) já fala numa “Lisboa que ninguém verá de joelhos” por ter “um cravo em cada mão”. E Ary dos Santos (As portas que Abril abriu) definiu bem “Dentro de um povo escravo/ Alguém que lhe queria bem/ Um dia plantou um cravo,/ Era a semente da esperança/ Feita de força e vontade/ Era ainda uma criança/ Mas já era a liberdade”.
Só que a data nos leva, também, a outras questões. Que a história das transições, de um governo autoritário para a Democracia, são sempre complicadas. A palavra verdade tem origens variadas. Na Roma antiga corresponde à veritas, mais ligada à precisão. Já no hebraico, emunah, está mais próxima à confiança (num deus ou num amigo) e dela deriva o Amém (“assim seja”). Mas na tradição grega ocidental, aletheia, corresponde só e sobretudo ao contrário da palavra esquecimento. Por ser algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem a indiferença, nem o perdão. É memória, mas é também História. É a capacidade humana de contar aquilo que aconteceu, o como e o porquê. E as novas gerações têm direito a essa verdade. Sobretudo merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos ou parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre, num moto-contínuo, a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, deve existir uma História sem voz. E quem dá voz à História são as mulheres e os homens livres que não têm medo de escrevê-la.
Em Portugal esse desejo de aclarar o passado, anunciado com pompas em 1977, ganhou forma só com a criação, pelo então primeiro-ministro Mário Soares, da Comissão do Livro Negro (Decreto-lei 110, de 26/05/1978). Sobretudo, assim declarou, como “forma de combater o ressurgimento de ideologias fascistas”. Nascida com a intenção de conseguir a “reposição da verdade histórica”, já no art. 2º, 2, dispunha não poder atingir fatos “que respeitem à organização, funcionamento e disciplina das forças armadas”. Como que reproduzindo a máxima do Estado Novo, “o Exército é o espelho da nação”. O que, definitivamente, compromete seus resultados. Chegou a publicar 25 volumes de conclusões, hoje esquecidos nas estantes e jamais reeditados. E, assim funcionou, a tal comissão, até ser extinta pelo Decreto-Lei 22, de 11/01/1991. Sem deixar saudades. Embora haja estudiosos como Priscila Hayner que, levando em conta se ter trabalhado com documentos de inquérito, imprensa da época e entrevistas qualitativas, consideram que poderia ser tida como uma espécie de Comissão da Verdade, os estudos comparados não lhe colocam nesse nível. Mas já foi algo importante, claro, uma espécie de resposta ao passado.
No Brasil, diferentemente, havia o consenso de que toda a verdade deveria vir a luz. A Comissão Nacional da Verdade nasceu dessa visão. Criada, pelo Congresso Nacional (Lei 12.528/2011), entre seus objetivos sobressai logo no art. 3º “Promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução histórica dos casos de graves violações de direitos humanos”. Quase 50 anos depois do Golpe Militar de 1964. E quase 30 anos depois da transição; com a eleição indireta, para Presidente da República, de um representante da oposição civil ao sistema ‒ Tancredo Neves. A Comissão Nacional da Verdade situou o Brasil entre os 41 países que, diante de múltiplos mecanismos da Justiça de Transição, criaram comissões da verdade para lidar com um legado de graves violações dos direitos humanos.
A história de quem exercia o poder, então, já era conhecida. Faltava a dos vencidos. Caminhamos nessa linha. E chegamos a 434 casos em que foi possível definir quem morreu, em que circunstâncias, e quais foram os responsáveis por essas mortes. Também a mais que dois mil casos de opositores do sistema desaparecidos, sem que pudéssemos chegar a provas. Além de descrever os subterrâneos da tortura e da repressão. Para registrar, fui um dos 6 brasileiros escolhidos para deixar claro esse pedaço da história do Brasil. Durante três anos nos esforçamos para contá-la com a precisão humanamente possível. Uma grande honra, assim considero. E creio que valeu a pena.
Fez bem, Portugal, em traçar o caminho que escolheu? Difícil saber. E talvez, depois de 50 anos, a pergunta já não faça qualquer sentido. Acabou, nada restou a fazer. Afora contar o que se passou em livros, o que vem se fazendo, como os de Alfredo Cunha, Fernando Rios, José Pedro Castanheiro, tantos mais. Sempre tendo em conta ser importante lembrar a história. George Orwell (1984) ensinava “quem controla o futuro controla o presente e quem controla o passado controla o futuro”. Bem a propósito, Pessoa encerra O Infante (de Mensagem) dizendo “Senhor, falta cumprir-se Portugal”. Falta mesmo. Só que, afinal, isso vai aos poucos se cumprindo, ao conhecer melhor seu passado. E como hoje todos repetem, nas ruas, Viva o 25 de abril, sempre.
José Paulo Cavalcanti Filho
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