Está disponível a parte II da entrevista com o cientista político Antonio Lavareda ao podcast Reconversa, apresentado pelo jornalista Reinaldo Azevedo e pelo advogado Walfrido Warde.
Nesta segunda parte, Lavareda fala sobre presidencialismo no Brasil, bolsonarismo, eleições presidenciais de 2026 e sobre a possibilidade de reeleição do presidente Lula.
Confira:
REINALDO AZEVEDO – Durante um tempo nós tivemos o tal do presidencialismo de coalizão, que era basicamente assim: o presidente se elege, não tem maioria no parlamento, há uma distribuição de cargos, ele forma a maioria no Congresso, mas tem um eixo de governança e ele conta com esses aliados. Agora isso se diluiu também à medida que você tem as emendas impositivas, as emendas do relator, mas ainda assim não tem maioria. A cada votação, você tem que ficar negociando caso a caso.
ANTONIO LAVAREDA – Ou seja, você tem a distribuição do que é tecnicamente chamado na literatura de incentivos laterais seletivos. O país assiste com naturalidade que, no dia em que se vota a reforma X, Y ou Z o governo precisou liberar 8 bilhões em emendas. Vê-se com naturalidade também o volume agregado de emendas hoje ser mais da metade, segundo alguns chega a dois terços, do investimento discricionário do governo federal. E é isso que eu chamo “parlamentarismo orçamentário”. Precisa encarar isso.
Coalisões de governo, presidencialismo de coalizão, é o que eu chamo de um truísmo. No sistema presidencialista multipartidário, ele é uma necessidade absoluta. Mas veja o seguinte, na Quarta República já havia três quatro partidos. Quando o sistema se fragmentou, você tem um leque de partidos. Mas isso não é o mais sério ainda. Mais sério no Brasil é o seguinte: há presidencialismo multipartidário no mundo todo. Não apenas na América Latina.
Na terceira onda da democratização, a partir dos anos 70, vários países, sobretudo da antiga União Soviética, que era daquela órbita, instituíram uma figura presidencial e também tem um pluripartidarismo. Qual é a diferença em relação ao nosso caso? 90%, eu vou repetir, 90% das coalizões presidenciais, dos portfólios ministeriais foram orientados por acordos, ajustes pré-eleitorais.
No Brasil, nós estamos na quarta coligação desse Lula 3, todas cumulativas.
Primeira coligação, dos partidos que se subscreveram à chapa Lula-Alckmin. Segunda coligação chegada da Tebet no 2º turno, a tal coligação da frente democrática. Terceira coligação, a da viabilização da PEC da transição e a quarta, pós-eleição. Qual é a inteligibilidade para o eleitor quando foi votar naquele deputado, naquela deputada daquele partido que essa organização apoiaria, seria oposição em relação ao governo? Nenhuma.
RA – Eu não vejo como esse Congresso vai ter menos poder, porque eu nunca vi ninguém entregar poder. Então, nós temos que ir para algum lugar porque como está também tende a entropia. Nós temos um presidente que tenta fazer a coisa avançar. Uma Câmara, como você disse, que tem mais dinheiro do que o governo para investir. Como é que a gente sai disso? Eu concordo em caminhar para um sistema híbrido português, por exemplo, que você tem um primeiro ministro efetivamente.
AL – Olha só, primeiro partindo de uma concordância com você, ninguém abre mão de poder. Ao longo dos últimos sete anos, a fragilidade dos presidentes levou a essa hipertrofia do Poder Legislativo. Isso começou, na verdade, quando o presidente era Rodrigo Maia, ainda no governo Temer. Essa hipertrofia do legislativo levou a esse quadro. Por exemplo, o orçamento secreto, jogou-se um pouco de luz, mas continuou. Os deputados e senadores têm no conjunto de emendas mais da metade, alguns dizem que dois terços, do total de volume para investimentos. É parlamentarismo orçamentário, que não é percebido pela população, logo, sem responsabilidade.
É muito difícil você andar para trás e revitalizar o presidencialismo que nós tínhamos no Lula 1 e Lula 2. Esqueça isso. Em 7 anos, o volume de emendas que nós estamos falando aqui, foi multiplicado por 5 ou 6 vezes. Então, institucionalmente, o país tem que evoluir numa direção que consiga compatibilizar eventual maioria no legislativo de uma orientação política ideológica com um presidente de outra. Como é que você faz isso? Você constitui um regime híbrido. O modelo português, por exemplo, que funciona, é todo centrado na assembleia nacional, mas com uma presidência despartidarizada. Lembra que quando o Marcelo, que era do PSD lá atrás, assumiu, abandonou partidos, etc? É muito difícil você instituir isso aqui, isso conseguia um certo grau de consenso. Nós vamos ter que evoluir para alguma coisa e aí está a minha preocupação, alguma coisa parecida com que era o regime de coabitação na França. Mas isso não funcionou bem.
Vamos evoluir para alguma coisa híbrida, ok. Mas o meu ponto é que essa evolução torna ainda mais exigível o enraizamento dos partidos. Não há possibilidade de regime híbrido com individualização da representação. Os políticos só serão responsáveis, se os seus partidos o forem. É quase impossível para o cidadão comum acompanhar a miríade de candidatos e de personagens políticos individualizados. A organização através de partidos faculta um quadro cognitivo de maior facilidade e apreensão para o cidadão comum.
RA – O bolsonarismo sobrevive a Bolsonaro?
AL – Lógico! O bolsonarismo veio emancipar uma porção à direita, pode chamar de extrema direita, amanhã pode surgir alguma coisa até mais à direita do que o bolsonarismo, quem sabe. Ele veio para emancipar esse eleitorado, que tem forte identidade em determinados segmentos da sociedade e vai continuar a existir. Bolsonaro está fragilizado no momento, inviabilizado eleitoralmente, mas não esqueçamos que no ano que vem ele vai ser um poderoso eleitor em muitos daqueles municípios, e não são poucos, onde ele teve 60, 70, 80% dos votos no segundo turno de 2022.
Às vezes a gente toma o calor de uma determinada conjuntura como se fosse capaz de definir situações que vão ser longevas. Não, às vezes é apenas conjuntural. Um exemplo é Trump, alvo de inquéritos e continua sombreado a Joe Biden nas pesquisas.
WALFRIDO WARDE – Eleições municipais de 2024. O senhor disse ainda no bafo do impeachment da Dilma que aquele tipo de votação do impeachment na Câmara “em Nome de Deus e da família” é uma Academia de Letras perto das eleições municipais.” Minha pergunta é sobre o nível das eleições e se divide em duas outras: a importância de São Paulo em 2024 para pautar a eleição de 2026, e sobre essa estratégia que se diz que o bolsonarismo adotará, de focar naqueles municípios em que é capaz de vencer no primeiro turno.
AL – A chance do Bolsonaro de ser kingmaker nos municípios em que ele abriu uma diferença de 20 pontos, ou de 70, 80, é muito grande. O PL pode fazer um número extraordinário de prefeitos, em relação ao que eles têm hoje, e vão comemorar isso. O Valdemar fala em mil, mas o Valdemar está inflacionando a expectativa dele próprio. Não vai chegar a mil, mas vai fazer algumas centenas de prefeitos.
A segunda pergunta, foi a importância de São Paulo para pautar 2026. São Paulo é a maior cidade do país, centro da mídia, centro dos principais interesses econômicos, vai ser muito importante, mas não vai ser capaz de pautar. A eleição de 2026 é um plebiscito sobre o incumbente, um plebiscito sobre Lula. Não é uma reflexão ou qualquer decorrência que se estabeleça em relação à eleição municipal, mesmo sendo de grande significado como eleição da capital do Estado de São Paulo.
Eleição de 2026 é Lula candidato à reeleição. E aí, o que nos dá capacidade de predição sobre o resultado, é o estado da popularidade do presidente Lula. Se a eleição fosse mês que vem, todos nós aqui diríamos que Lula seria reeleito.
RA – E a correlação entre essas eleições?
AL – Nós estudamos, eu e a professora Helcimara Telles, da Universidade Federal de Minas Gerais, já lançamos quatro volumes, uma tetralogia pela Fundação Getúlio Vargas, sobre eleições municipais desde 2008. Nós, como organizadores e autores de capítulos e mais dezenas de pesquisadores da academia, e alguns fora dela, que têm refletido sobre esse tema, que é pouco estudado ainda no Brasil, pouquíssimo estudado nos Estados Unidos. Num artigo que publiquei na Folha de S.Paulo, com Vinícius Alves, que trabalha comigo, um cientista político extremamente talentoso, nós identificamos o seguinte: qual é a relação entre eleição para prefeito, eleição para deputado federal, eleição para vereador e eleição para deputado federal. A correlação, quando você avalia no nível agregado o estado e agregado por polo ideológico, vamos chamar esquerda, direita e centro, entre prefeito e deputado federal é de 0.82. Correlação absurdamente elevada. Entre vereador e deputado federal é 0.9
RA – Então, eleição municipal é fundamental para formar Parlamento.
AL – A eleição para a Câmara Federal 2026 começa no ano que vem.
RA – Portanto, define com que facilidade ou dificuldade o presidente da República vai governar.
AL – Define padrão de governabilidade que você vai ter adiante. Por exemplo, vamos ver o voto, a origem dessas bancadas. Tomamos o voto agregado, o voto de todos os brasileiros que votaram efetivamente para todos os candidatos, dos três Campos ideológicos. Os partidos da direita para a Câmara Federal receberam em 2022, mesma eleição que elegeu Lula, receberam 62% dos votos. Em 2018, que nós pensamos um ano no máximo da radicalização do país, eles tinham recebido 59% dos votos. Como eu disse lá atrás o Brasil enveredou a direita desde 2012, vai seguindo.
Uma outra característica que torna absolutamente notável a vitória de Lula, no ano passado, foi o fato de que ele, um candidato de oposição, conseguiu destronar um incumbente, com todos aqueles recursos, num contexto de eleições mantenedoras. Por que eu tô chamando de a eleição mantenedora? Foi a maior taxa de reeleição de deputados. E sabe qual foi o percentual de reeleição de governadores? 93%.
WW – Essa Câmara foi eleita com base no que aconteceu em 2020. O que é um problema de governabilidade para o país, porque o presidente que foi eleito em 22 contra Bolsonaro, se depara com uma Câmara eleita pró Bolsonaro.
AL – O presidente tendo que praticar uma espécie de coabitação com o diferente.
RA – Esse sistema realmente é democrático, porque a partir de cada cidade, de cada município, você tem um reflexo direto na câmara. Então esse sistema é bom?
AL – O problema do sistema é a opacidade. O eleitor vota num candidato a deputado federal, deputado estadual, que é basicamente encomendado, direcionado pelo prefeito e viabilizado pelo vereador. As negociações, no sentido mais amplo, dos candidatos a deputado federal com os prefeitos, uma vez estabelecidas, consolidadas, são no dia da eleição, às vésperas, vereadores que são os cabos eleitorais por excelência. O problema é que o eleitor não empresta o menor significado político ideológico a sua escolha para deputado federal e deputado estadual. Resistência maior que ele tem é quando o prefeito ou Vereador vem querer imprimir ali a sua a sua marca, a sua digital na escolha. O Zema enfrentou essa dificuldade na eleição do Bolsonaro, no segundo turno. Ele prometeu, fez uma mega reunião de prefeitos para chegarem lá e normalizarem o voto no Bolsonaro. Em Minas, no segundo turno, tivemos uma vitória do Lula, ali 0.4, uma vitória estreita, mas dos 853 municípios mineiros, o Lula ganhou em 354 com mais de 60% dos votos. Uma diferença de 20% sobre Bolsonaro. A diferença enfrentou, muitas vezes, a vontade do prefeito, de vereadores e, sobretudo, a vontade do governador Zema.
RA – O Lula, no oitavo mês do governo, está reduzido a seu reduto original, que é gigantesco, ele está conseguindo conquistar já um pouquinho do bolsonarismo? Como é que você vê, o que é que está em curso? E se a eleição fosse agora, Lula seria reeleito? Ele está conseguindo ir além daqueles que o elegeram?
AL – Aprovação de governo, avaliação de governo, isso o George Gallup começou a fazer na década de 30 e tem sido sempre um excelente preditor de desempenho dos incumbentes. Então, com mais de 50% de aprovação, difícil, raríssimo um incumbente não ser reeleito. Menos de 50%, fica complicado. O Trump jamais chegou a 50%. Biden teve isso no início do seu governo, mas está patinando ali entre 40, 43, já teve 38, 39, o que traz uma incógnita.
O presidente Lula hoje chegou na última pesquisa da Quaest a mais de 60%, 62%. E um ótimo e bom de 42. O que é 62 dizem? Que seis em cada 10 cidadãos brasileiros têm uma leitura, no mínimo, razoavelmente positiva desse governo. E neles, 42%, que corresponde a quase 70% desse contingente, tem uma leitura enfaticamente positiva. Qual é o significado disso? Como é que nós devemos avaliar? Quanto é que o Lula teve no segundo turno de 2022? O Lula não teve 50,9% da população. Ele teve, arredondando, 39% do voto da população, no sentido estatístico do eleitorado, contra 37%, arredondado, de Bolsonaro. Ou seja, cresceu de 39 para 42. Cresceu efetivamente e tem mais espaço de crescimento. Esse espaço de crescimento, os 62%, o círculo mais amplo de simpatia, chamamos assim, pelo seu governo. Em fevereiro, num radar da Febraband, nós já vimos que havia 73% de simpatia possível, potencial, para o governo Lula eventualmente navegar nessa direção, tendo como horizonte. Vamos ver o que a realidade vai nos trazer.

