Entrevista com Antonio Lavareda – Parte I

Foto: Reprodução

Esta semana, foi ao ar no podcast Reconversa uma entrevista com o cientista político, especialista em pesquisa de opinião e presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), Antonio Lavareda. A conversa foi conduzida pelo jornalista Reinaldo Azevedo e pelo advogado Walfrido Warde.
O Blog Rhaldney Santos Oficial teve acesso à íntegra da entrevista, que será reproduzida em duas partes no nosso site.
Na primeira delas, Lavareda destrincha a política no Brasil e o eleitorado brasileiro, passando por temas como pesquisa eleitoral, o fenômeno da abstenção de votos, o contexto das eleições presidenciais de 2022 e a estrutura do sistema eleitoral brasileiro.

Confira a primeira parte da entrevista:

REINALDO AZEVEDO – As pesquisas eleitorais de 2022 acertaram?

ANTONIO LAVAREDA – As pesquisas medem intenções de voto, ou seja, elas medem atitudes e opiniões, mas elas não conseguem prever comportamentos, Porque, em primeiro lugar, as pessoas mudam de opiniões e atitudes. Eu sempre lembro que até casamento se desfaz na porta da igreja. De outro lado, uma questão importante é a abstenção. Um fenômeno no Brasil que tem sido pouco encarado na sua dimensão e na sua etiologia. Um problema que o Brasil tem que enfrentar.
Então se faz uma pesquisa na véspera da eleição, pergunta se as pessoas vão votar, 90% dizem que irão comparecer. Quando chega a eleição, 24% não comparecem. Afora isso, mais um quantitativo importante vota branco ou nulo. O nulo é erro e tem a ver com o mesmo problema que explica a abstenção. Tem a ver com pobreza.
Existe no Brasil uma abstenção compulsória. 32 milhões de pessoas, na última eleição não votaram. Estudando os dados do Tribunal Superior Eleitoral que descreveram a abstenção no primeiro turno, que não foi muito diferente no segundo, identificamos que a correlação entre escolaridade e votação, comparecimento, é de menos 0.87. Significa que quanto menos escolaridade, menos comparecimento.
Pra vocês terem uma ideia, é mais ou menos o seguinte: pega os degraus de escolaridade que, segundo o TSE, vão de formação universitária, terceiro grau, até analfabeto. Nós temos mais de 6 milhões de eleitores analfabetos. No topo da escolaridade a abstenção é de 12%. No mínimo, a não escolaridade, 52%.
Quando as preferências pelos candidatos são razoavelmente distribuídas nos demográficos, não tem grande impacto na abstenção. Mas quando chega numa eleição, como a do ano passado, com Lula com mais de 40% dos eleitores dele com no máximo o primeiro grau completo, isso tem um impacto devastador. Eu estimo que o Lula perdeu em torno de 9 milhões de votos no primeiro e segundo turno por conta da abstenção.
O que explica essa abstenção? O custo de votar para essa população. Boa parte desse contingente de eleitores é de pessoas que migram em busca de trabalho pelas diversas regiões do Brasil. E esses trabalhadores, muitos deles, não vão fazer a atualização do seu registro no cartório eleitoral para poder votar no dia da eleição. E tem o custo do transporte, que para muitas famílias significa ter um pão, dois, três pães na mesa. E outros fatores. Nós sabemos que mais de ¼ das famílias são chefiadas por mulheres, com filhos. No dia da eleição, com quem ela deixa os 3, 4 filhos para ir votar?
Óbvio que o país precisa refletir sobre essas coisas. O transporte público gratuito deve ser obrigatório. Creches devem abrir no dia da votação e outras medidas específicas para esse segmento para que diminua a abstenção no Brasil.
Pense o seguinte, a Argentina tem 35 milhões de eleitores. No último passo, as primárias recentes, votaram 22, 23 milhões. A nossa abstenção foi uma Argentina.Será que o país deve refletir sobre isso? Lógico que deve. Mas infelizmente não tem refletido.

WALFRIDO WARDE – O que o senhor colecionou ao longo da sua vida talvez tenha sido, de certa forma, revolucionado com o aparecimento das redes sociais e dessas novas formas de fazer política quem. A Cambridge Analytica criou o chamado, que é basicamente empacotar o eleitor em vários grupos segmentados e levar informação e fazer propaganda política de uma maneira muito segmentada, muito, digamos assim, customizada. De que forma isso atrapalha ou faz com que os seus conceitos e as suas habilidades ao longo de uma vida toda tenham que ser renovadas ou revistas?

AL – Essa é uma excelente questão. Cientistas não podem se satisfazer nunca com conhecimento alcançado num determinado momento. Você precisa revisitar os cânones, investir novos caminhos, desenvolver graus cada vez maiores de autocrítica e, com isso, conseguir. Também é muito importante você tentar convergir áreas de conhecimentos científicos. Há um conceito antigo, que quem popularizou nessas últimas décadas foi Edward Wilson, um biólogo americano, o conceito de “consiliência. Exatamente você tentar fazer um esforço para trazer plataformas de conhecimento para fazer avançar o conhecimento.
Eu fiz isso em duas áreas, com conceito de neuropolítica, trazendo o conhecimento de biologia evolucionária, de neurociência aplicada, e juntando obviamente com os conceitos de ciência política, de sociologia política, de psicologia política para fazer avançar o conhecimento. Fiz isso também com comunicação em geral. Num livro que escrevi com o João Paulo Castro sobre neuropropaganda. Como é que é a neurociência, a biologia evolucionária, ajuda a entender o comportamento do consumidor e desenvolver as mensagens persuasivas necessárias.
Tudo isso começa no final do século passado, quando a neurociência tem a famosa década do cérebro no congresso americano. O Governo Clinton despeja bilhões de dólares, o Congresso solta bilhões de dólares para pesquisa e então a neurociência cresce numa década o que não tinha crescido não sei 100 anos anteriores. Vai, então, ajudando a consolidar um conhecimento novo que indica que naquela velha competição, emoções versus cognição verso conhecimento, no sentido específico, onde as emoções eram reservadas ao mesmo papel que lá atrás o Platão aludia – as emoções são cavalos selvagens precisam ser controladas. Descartes, boa parte dos filósofos, estudiosos, chamaram a atenção para isso. Mas na verdade vai-se chegando à conclusão que são complementares. Qualquer um de nós não consegue pensar do ponto de vista mais racional e sentir em separado. Essas coisas caminham juntas. E se como Walbert Zayonce, aí pelos anos 80 demonstrou, se houver prevalência, será sempre prevalência da dimensão emocional. Isso é provado do ponto de vista da ontogenia.
Então, aos 12 dias de idade um garotinho consegue imitar as expressões emocionais da mãe ou do pai. Do ponto de vista filogenético também. O drive é emocional e a gente precisa entender isso. Ajuda bastante a nos orientarmos dentro do quadro de referência comunicação de uma forma geral.
O meu trabalho é nessa direção. Nós utilizamos no Neurolab esse tipo de conhecimento e nós divulgamos no Brasil a teoria da inteligência afetiva que é uma das escolas que pretenderam explicar o comportamento eleitoral. Primeira delas a escola de Columbia, o Paul Lazarsfeld, ainda nos anos 40 do século passado, se notabilizou porque fez o primeiro panel, ou painel, que é uma técnica de pesquisa que utiliza a mesma amostra, mas não as mesmas características da amostra, as mesmas pessoas, que são entrevistados ao longo de uma campanha eleitoral, em diferentes momentos. E aí você consegue saber exatamente quem mudou para quem, quem perdeu o voto para quem, de onde são provenientes suas intenções de voto. Só para ficar mais claro, se você tem um candidato que tenha 40%, em maio, e esse candidato chega em setembro com 40%, a leitura comum é que ele manteve os eleitores. Mentira é impossível isso ocorrer. Ele perdeu votos nesse período e ganhou votos. E só esse painel permite-nos saber de onde vem cada movimentação.
A equipe do IPESPE, coordenada por mim, fez no Brasil, na primeira eleição municipal da Nova República, o primeiro painel, com a técnica lançada em primeira mão pelo Lazarsfeld, lá nos Estados Unidos. Um austríaco fantástico, psicólogo matemático, sociólogo e ele também construiu vários equipamentos para ajudar o rádio, para ajudar a se acompanhar o padrão de audiência do rádio.
A ciência precisa ser sempre atualizada e, sobretudo, a aplicação. Nós trouxemos a técnica de panel para o Brasil e outras coisas. O personal analyse que é um gadget que ajuda a quantificar o resultado de pesquisas de material audiovisual em focos de grupos. Fizemos no Brasil o primeiro tracking eleitoral telefônico. Nós fazemos pesquisa telefônica desde 1993, nem havia celular. Fizemos o primeiro screem test de filme no Brasil, com o filme Lisbela e o Prisioneiro, uma técnica de Hollywood. Felizmente, sou de um tempo em que a globalização estava tão avançada e por conta disso houve oportunidade de trazer alguns métodos, algumas técnicas aqui para nós. E em 2010 criamos o Neurolab que também deu uma contribuição importante.

RA – Estamos de algum modo a um certo triunfo do populismo sobre as abordagens racionais da Política? Quanto numa decisão, se é que isso é quantificável mesmo, numa decisão de voto, questões ideológicas à parte, quanto dessa escolha tá numa esfera puramente racional e quanto tem de domínio emocional?

AL – Olha, na sociedade de uma forma geral há 15% de eleitores, que consegue de fato ter um conjunto de ideias, um sistema de compreensão da realidade política bem estruturado, denso. Esse eleitor pode ser o eleitor racional. Absolutamente racional vírgula, porque ele para se dirigir para essa reflexão ele teve um drive emocional. Voltando ao Platão, o Cavalo Selvagem, tem dois cocheiros nessa carruagem, um cocheiro razão, e um e outro cocheiro emoção. Então, esse cidadão, cidadã, pode ter uma avaliação mais racional.
Todos os outros têm um conhecimento mais escasso, mas tênue, com menor densidade. Então, nesses, a importância do fator emocional é maior. Teor emocional joga um peso maior. Mas sempre essas coisas aparecem combinadas. Nós estávamos conversando, antes do programa começar, sobre um aspecto interessante. O que as pesquisas nos mostram sobre a exposição das pessoas a audiovisuais, programas de televisão, filmes, podcast etc? Primeiro lugar, o que registra mais, 60%? A imagem! Segundo lugar, 30%? O tom de voz, o ritmo, a forma em geral como as pessoas se expressam, o áudio, o fundo musical, a trilha. 10% o conteúdo.

WW – Professor, no dia 6 de junho de 2016, o senhor disse o seguinte: “a lava jato se tornou uma variável de incerteza, imprevisibilidade. Ela passa como um trator sobre os partidos políticos mais tradicionais e torna os eleitores mais incrédulos em relação a eles e aos candidatos”. No dia 15 de junho de 2016, o senhor disse o seguinte: “se Lula não for preso e tiver condições legais de concorrer, não tem chance de ser eleito, mas durante muito tempo não vai aparecer ninguém com tanta expressão quanto ele na esquerda brasileira”. Estou lendo isso não pra dizer que o senhor errou, porque estava se referindo a 2018, quando disse isso, não a 2022. Quando é que o senhor começou a levar a eleição de Lula, em 2022, a sério?

AL – No momento da prisão do ex-presidente Lula, ele liderava todas as pesquisas. E liderou até agosto daquele ano. A minha convicção não era por conta das pesquisas. Minha convicção é de que o sistema geral não deixaria o Lula ser eleito naquele momento em nenhuma hipótese. Haveria uma semana antes da eleição, novas operações da lava jato. Haveria qualquer coisa inimaginável. Os fatos posteriores e o esclarecimento sobre o que foi operação lava jato mostram que eu tinha razão. Assim como o Haddad, naquele 2018, também não iria ganhar aquela eleição. E se ganhasse, não levaria, haveria operação da lava jato nas semanas posteriores à eleição, os seus ministros, quando nomeados, seriam presos, eventualmente. Não teria chance. O sistema estava voltado para isso. Dilma Rousseff ganhou a eleição em 2014 e não levou. A rigor, um dia vai se ver que Dilma nunca governou. Não houve o segundo mandato.
Eu tive convicção que o presidente Lula seria eleito em setembro de 2021. Algumas pessoas vão lembrar que, desde setembro de 2021, eu comuniquei a elas que dificilmente o presidente Lula não seria eleito. Imaginava que seria por uma margem um pouco maior, porque eu não era capaz de imaginar a capacidade de manipulação do estado brasileiro que o então presidente, o incumbente candidato, iria dispor auxiliado pelo Congresso, pela Câmara Federal, sobretudo, e sobre o olhar preocupado, mas naquelas circunstâncias manietado, do Supremo Tribunal Federal porque várias ilegalidades aconteceram.

RA – Votaram-se duas PECs na boca da urna praticamente, absolutamente inconstitucionais: a do aumento dos benefícios sociais e a dos combustíveis. Só que não havia como o Supremo dizer isso é inconstitucional sem que criasse uma espécie de caos social.

AL – E isso tudo gerou mais abstenção, que comentei há pouco. A natureza da concentração do voto do presidente Lula gerou aquele resultado apertado 1.8 de diferença em termos de votos válidos. Lembrando que o presidente Lula foi o primeiro eleito à Presidência do Brasil que ganhou entre os estratos socioeconômicos, ganhou apenas na fatia de 0 a 2 salários mínimos, não ganhou dois a cinco e não ganhou acima de cinco salários. Assim como foi o único eleito presidente vitorioso apenas em uma região, o nordeste, perdendo nas quatro outras. Assim como foi o primeiro presidente que ganhou apenas em um gênero, ganhou entre as mulheres, perdendo entre os homens.
Essas características ajudam a mostrar o tamanho daquela vitória. Ou seja, era quase impossível, qualquer outro brasileiro não ganharia aquela eleição. Foi a primeira vez que o incumbente no Brasil foi derrotado. E os incumbentes ganham as eleições mundo afora. Adam Przeworski, cientista político, fez um levantamento de 200 anos de história, 79% dos governantes candidatos ganharam, uma coisa absolutamente natural. Eles têm a chamada vantagem do incumbente. O governante está exposto à mídia, o governo tem a máquina, tem a capacidade de gerar agenda. Mas ninguém podia imaginar que nós chegássemos a inserir nessa vantagem do incumbente em 2022, as vantagens inconstitucionais.

WW – O senhor falou que o sistema não permitia que Lula fosse eleito, como não permitiria que Haddad fosse eleito, como não permitiu que Dilma governasse. Mas você veja que curioso, professor, nós temos a ideia, talvez vã, de que eleger um Presidente da República é algo imponderável. Tem uma série de fatores complexos que levam à eleição de presidente da República. No entanto, a operação lava jato e os seus protagonistas fizeram algum esforço retórico para dizer que o que eles faziam era combate à corrupção, a operação lava jato teve uma força política preponderante no sentido de evitar que alguém fosse eleito. Mas fez só isso ou ajudou a eleger Bolsonaro?

AL – Ela foi fundamental para ajudar a eleger o Bolsonaro. Ela abriu o espaço. Como é que abre espaço? Produzindo uma super crise política e, no bojo dessa crise política, que também tinha uma dimensão judicial policial, produziu a chamada eleição crítica. Aquelas eleições realizadas em momentos em conjunturas excepcionais, nos países nas quais o sistema político tradicional, os atores políticos tradicionais são mais ou menos varridos do mapa, abrindo espaço para a chegada de outsiders, candidaturas antissistema. Bolsonaro não é o primeiro outsider que aparece entre nós. Em eleições bastante críticas anteriores, outros ocorreram. Dois conhecidos, como Collor e Jânio Quadros, no final da Quarta República. Naquela eleição de 1960, que de certa forma precipita o desfecho da Quarta República naquele momento no Brasil.
A conjuntura crítica começa depois de 2013. Na eleição de 2014, o conteúdo da campanha tucana, a postura do candidato tucano rejeitando o resultado das urnas logo a seguir, tudo isso vai abrindo espaço. Como eu costumo dizer, 2018 não ocorreu de repente. O Brasil não virou a direita em 2018. Ele vinha caminhando desde 2012. Eu tenho evidências disso estudando eleições municipais. A partir de 2012, a direita cresce sistematicamente. E a eleição de 2014 contribuiu para legitimar a retórica do eleitorado, do centro até a direita, de que não havia legitimidade na reeleição da ex-presidente Dilma, e aí o Bolsonaro chega.
Bolsonaro teve 46% dos votos, em 2018. Outro dia houve uma eleição primária na Argentina, todos nós acompanhamos, com vitória do Milei. Acontece que na Argentina há vertebração da política. As preferências políticas são enraizadas na sociedade. Se fosse uma pesquisa, a votação do Milei, a votação da União pelo Câmbio, do Juntos pelo Câmbio e da União do partido justicialista, seria um empate técnico – 31, 29 e 28% dos votos válidos. Qual é a diferença? É que lá você tem forças políticas enraizadas. Aqui não. O Bolsonaro levou 46% dos votos e o candidato que aqui seria o equivalente a Patrícia Bullrich, a candidata da direita tradicional, foi reduzido a 4,5%.
A gente não tem vertebração da política, a gente não tem partido político e esse é o problema basilar do sistema político brasileiro. Não temos partidos políticos, logo acrescentando, porque temos uma regra eleitoral que é o voto proporcional de lista aberta, que, na verdade, é uma lista desordenada. Absoluta desorganização. Personaliza a política e fragiliza o eleitorado. O eleitorado não tem âncora. Quando surge uma nova questão política, como é que ele se orienta? Ele olha para quem? Quem ajuda, quem direciona? Quem faz um frame cognitivo para ele inserir aquela questão e adotar uma posição a respeito? Não há porque não temos partidos.

RA – Quando se diz que o PT é o único partido político de certo modo no Brasil, isso procede a seu juízo? Quando a gente lembra que Lula já disputou seis eleições e ganhou três. É o PT partido ou ainda Lula?

AL – Olha, as duas coisas. Na verdade, não haveria Lula sem o PT partido e vice-versa. Como é que os partidos surgem? Os partidos que têm uma expressão social importante surgem na sociedade, seja em movimentos sociais, em entidades como no passado, no meio regional, profissional, etc. E eles crescem à medida que seus candidatos, no regimes presidencialistas, ganham dimensão de apoio eleitoral. Por exemplo, Getúlio foi muito importante para o fortalecimento do PTB. O brigadeiro Eduardo Gomes foi fundamental para o deslanche da UDN nacional. Juscelino Kubitschek era uma força que mantinha, embora declinado, o PSD, mantinha com esse tamanho. Esses líderes, em geral, superam a preferência do partido, a chamada identificação. Mas essas coisas são, digamos assim, sinérgicas.
O que você tem no Brasil hoje? Tem um Lula, tem um lulismo, seis eleições. Não há equivalente no mundo, Oriente, Ocidente, não há equivalente no mundo democrático a uma liderança que tenha disputado tantas eleições presidenciais ao longo de 33 anos. É uma coisa singular, um dia vai ser estudado.
Então, o Lula é um fenômeno. E o que que você tem mais no Brasil hoje? E agora vamos fazer um crédito para o ex-presidente do Bolsonaro. O Bolsonarismo é um movimento político que é o equivalente funcional de um partido político, vamos reconhecer. Ele convocou uma direita que já havia, não foi o bolsonarismo quem inventou a direita no Brasil. Às vezes as pessoas analisam isso como se ele fosse o fato da direita. Ele expressa o que já havia no Brasil, o que alguns analistas dizem que estava recolhido nos armários, nas 27 unidades da Federação, e que votava nos candidatos de centro-direita, em processos nacionais capitaneados dos Tucanos. O PSDB tinha do centro até a direita para representar e fez isso de 94 até 2014. Então, o bolsonarismo autonomizou a direita, pela primeira vez a direita aparece com candidato. Ele próprio sempre se orgulhou de se auto classificar como direita. Lembremos que os líderes tradicionais da direita brasileira diziam que eram centro, a maior parte deles “não, esse negócio de esquerda direita já está ultrapassado”. Essas coisas todas, o Bolsonaro fez isso e hoje existe uma direita, que, no momento, está no PL, mas se o bolsonarismo, se o Bolsonaro migrar para outro partido, vai provavelmente acompanhá-lo.
O Brasil precisa enraizar partidos mais ao centro, centro-direita, centro-esquerda. Isso foi fundamental para a Quarta República. Se não houvesse PSD, a Quarta República tinha acabado logo no seu primeiro momento. Ou seja, o Getúlio engendrou PTB e PSD e foi esse jogo, esse equilíbrio, que permitiu aguentar aos trancos e barrancos até 1964, quando uma série de fatores, que vocês conhecem muito bem, levaram o governo de esquerda, que chegou lá por acaso. João Goulart lá tinha sido eleito. Naquela época, a eleição do presidente era separada da de vice-presidente, então, o país queria um presidente com o perfil do Jânio Quadros e chegou lá. Um belo dia, sete meses depois, descobriu que o presidente era um gaúcho. Elegeu um mato-grossense e chegou lá um gaúcho, João Goulart.

RA – Como é que esse centro se estrutura? Porque eu vejo um centro que não consegue resistir à força de atração do bolsonarismo. Por exemplo, Eduardo Leite, todas as vezes que se manifesta, ele se deixa levar pelo campo gravitacional dessa direita mais radical na prática, que é o bolsonarismo. Tem espaço para surgir um centro ou o próprio PT vai incorporar o centro?

AL – Olha, Reinaldo, o problema não é no espaço. O problema é a institucionalidade. O problema são as regras. Você tem no centro, aquele pontinho que, na verdade, não existe. As pessoas não se aguentam no centro-direita, centro-esquerda. O centrista ultra cêntrico praticamente não existe. Mas essas pessoas, como é que se organizam? Há uma dezena de partidos e de projetos políticos que tentam competir por aí. Então, como é que você constrói, como é que você articula as forças em torno deste ou desta candidato, é muito difícil por conta da fragmentação. E o que gera essa fragmentação absurda? A regra eleitoral, o tal voto proporcional.
Sem as plataformas partidárias, fica muito difícil os indivíduos emergirem a partir delas. Por exemplo, nos Estados Unidos, se os partidos fossem tão débeis quanto entre nós, Obama não teria sido presidente, Bill Clinton não teria sido Presidente, Jimmy Carter não seria presidente, nem o Trump. Impossível, se não houvesse partido democrata, seria impossível, se não houvesse primárias. O problema no Brasil é o não enraizamento de partido, os partidos, como eu chamo, hidropônicos, que elegem para a câmara federal empreendedores individuais.

RA – O sistema teria de ter uma mudança, por exemplo o voto distrital misto, o que é que você imagina do ponto de vista estrutural?

AL – Os intelectuais, meus colegas, adoram o sistema distrital misto. Eu também, só que eu sou prático. O voto distrital misto tem duas dificuldades. Primeiro, só pode ser aprovado por PEC, com quórum alto. Segundo, exige a definição, o desenho, de distritos. 503, se fosse distrital, todos, no caso do modelo misto, metade disso. Vamos ter aí 206, 207 distritos que no dia seguinte à sua definição seriam judicializados.
As eleições, tanto no proporcional de lista pré-ordenada, como no distrital misto, o custo é 80% menor. Nós temos campanhas caríssimas no Brasil, são tão caras que não aguentam auditoria do Tribunal Superior Eleitoral. É uma competição, como eu chamo, darwiniana. Mulheres e intelectuais são expelidos do sistema, porque não têm condição de competir. É um cenário propício para os mais extrativistas. Os quadros da política mais extrativistas são os que têm condições, extrativistas no bom e no mau sentido.

WW – Nos Estados Unidos eu sei exatamente quais são os interesses econômicos que financiam um partido político. No Brasil, eu não sei mais porque nós vivemos a falácia do financiamento público de campanha. Talvez nós estejamos migrando do financiamento empresarial sub-reptício para um financiamento conduzido por organizações criminosas no Brasil. Pior do que isso, nós estamos substituindo ideologia por Fake News nas redes sociais. Estamos vivendo um retrocesso, a despeito dessa nossa boa vontade de melhorar o cenário político eleitoral no país?

AL – Primeiro, há que se controlar a origem do dinheiro que transita nas eleições. Isso é fundamental: origem do dinheiro. Origem e a forma como é gasto. Fundamental! Isso vem em socorro do meu ponto. Eleição passada, 22.850 candidaturas no Brasil. Como é que o Tribunal Superior Eleitoral faz isso? É brincadeira. Se você tivesse a eleição onde os concorrentes efetivos, que precisam ser controlados, cuja contabilidade vai ser controlada, são 28. Quase 100 vezes mais fácil, então é o caminho. O que você diz, dando estatura a esse problema, deve levar a uma reflexão de “como é que a gente enfrenta?”. Transformando as eleições proporcionais, tal como está na Constituição, no Artigo 45, em eleições de lista pré-ordenada.
Com relação ao segundo aspecto, que é o papel das fake news, tem inteligência artificial, agora generativa, tem fake news, deepfake, tem a combinação disso tudo, que faz países europeus, como a Alemanha e França, estarem desde 2017 envolvidos com isso. A União Europeia mergulhada. Os Estados Unidos reagiram depois de 2016, quando se constatou a invasão eletrônica de empresas e escritórios Russos no processo eleitoral. O Brasil também acordou para isso e nós temos que ter uma regulamentação. E aí o discurso da “absoluta liberdade”, que ora lembra a primeira emenda norte-americana, ora lembra cânones constitucionais nossos, não pode ser suficiente para deixar a cidadania sem defesa diante de fake news. Se eleições, basicamente, são processos de escolha onde a matéria-prima por licença é a informação, se você vicia a informação, você vicia o processo. Não tem sentido. Agora eu vejo o seguinte: fake news postas em prática com inteligência artificial e de responsabilidade de milhares de candidatos individuais é uma coisa. Agora você com lupa em cima de 28 personagens, pessoas jurídicas, partidos, com certeza é mais fácil, teoricamente, controlar isso.
O volume de dinheiro, eu tenho dúvidas. Você sabe quanto os norte-americanos gastaram na última eleição presidencial, no agregado? Gastaram 6 bilhões de dólares na eleição presidencial e, ao todo, juntando o Congresso, 14 bilhões de dólares. Vão gastar esse ano pelo menos mais 20%, porque lá tem crescido em proporção geométrica.
Então, o custo da Democracia é muito elevado. Uma certa demagogia também, magnificada na operação lava-jato, levou à demonização, à satanização do custo das eleições. Mas, de qualquer forma, até por questão do custo, a mudança da regra proporcional também ajuda. Volto a dizer: eleições 80% mais baratas das proporcionais, em termos relativos, levando em conta respectivas economias de Espanha e Portugal.

RA – Por que que você fala que nós vamos pegar 28 mil e transformar em 28? Nós vamos controlar 28 o que?

AL – Porque são 28 legendas. Eu estou dizendo o número de legendas hoje com presença do congresso. Que chegue a 30. Você vai votar no partido. O indivíduo desaparece? Não, o indivíduo encabeça as listas. O teor de personalização continua a existir, mas não a hiper personalização que torna a representação hoje individualizada no Brasil. Isso enfraquece, fragiliza a democracia.

RA – Você lembrou que o Lula foi o único presidente que venceu entre as mulheres, ele venceu entre os pobres, ele só venceu numa região, o Nordeste. Mas quem vai para o Congresso é majoritariamente conservador, que costuma formar o comando do Congresso.

AL – Nós temos uma desconexão entre esse voto presidencial e o voto para deputado federal. As pessoas votam nos indivíduos. Pesquisa do IPESPE e ABRAPEL mostrou que 15 dias depois do primeiro turno, 50% dos eleitores não lembravam o partido do candidato que tinham votado. Num outro estudo, relativo a 2014, do Eseb, coordenado pela professora Raquel Meneghello, da Unicamp, apurou que 45 dias depois da eleição só um terço dos eleitores lembrava o nome do deputado que havia votado. Então, nós estamos falando de uma absoluta opacidade do Congresso, mais especificamente da Câmara Federal. Ele se beneficia da opacidade. Não tem nenhuma dependência da opinião pública.
Agora, volto a fazer outro crédito para o bolsonarismo. Salvo os eleitores de esquerda, e até à esquerda do PT, que são controlados pelas suas entidades, e os eleitores bolsonaristas, que elegeram aí os deputados que são extrema direita, que também são patrulhados digitalmente. Isso é uma espécie de “mandato interativo”, mas isso termina sendo, de alguma forma, positivo. O resto é uma autonomia brutal.
O nosso presidente da Câmara, pelo qual tenho admiração pela sua capacidade de articulação, foi eleito com 90% dos votos. Isso revela habilidade do Arthur Lira e a absoluta falência do sistema partidário. Isso não existe em nenhum lugar do mundo. É jabuticaba pura e uma jabuticaba que denota a má qualidade do nosso sistema político. Por isso que nós temos o Centrão.
Imagina um cidadão, nível de informação apenas médio sobre a realidade política, não reflete sobre ela todo dia, todo dia ele vê nas manchetes “Centrão fez isso, Centrão fez aquilo, Centrão vai para o governo…”. Quem é que votou no Centrão? Você conhece algum eleitor do Centrão? Então, eu defini num artigo que o Centrão é uma entidade político-metafísica, é um partido sem registro no Tribunal Superior Eleitoral, é uma frente parlamentar sem signatários, uma maçonaria sem lógica.

RA – O PP vai entrar no governo pelas mãos do Arthur Lira. O Ciro Nogueira presidente do PP disse que “gente do PP que votar com o governo vai ser punido”. Fica difícil.

AL – Recuando no tempo, em dezembro do ano passado, Lula querendo fechar às pressas ali o ministério, convoca de manhã a imprensa e anuncia o ministério. Estão lá três ministros do União Brasil. À tarde, o líder do mesmo partido, União Brasil, anuncia à imprensa que o partido dele é independente. Não existe no mundo, isso é singular demais, é problemático demais. Se a sociedade não reflete sobre isso, se encara isso como tecnicidade, própria da natureza da política no Brasil isso não vai mudar, só vai piorar. E não por acaso, o Brasil tá condenado a esse voo de galinha. Quando cresce, cresce como voo de galinha, fica esperando o Salvador da Pátria. Mas o conjunto da governança não entrega, não produz os melhores resultados porque é extraído em grande medida sob a ótica, o crivo de uma regra absolutamente disfuncional.

 

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